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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A revolta das palavras


A revolta das palavras



Língua portuguesa convocou todas as palavras para uma Assembleia Geral. O motivo foi o veemente apelo que lhe fizeram alguns de seus súditos mais fiéis que se vangloriavam de conhecê-la por dentro e por fora.

Ela ia passando faceira em seu gingado natural, engordando uns quilinhos aqui, ao ingerir palavrinhas novas, e emagrecendo acolá como sói acontecer às línguas, que, sendo gulosas por natureza, alimentam-se de gregos e troianos. Mas os súditos fiéis interromperam sua marcha normal para reclamar a deformação que vinha sofrendo sua bela figura, causada, principalmente, por estrangeirismos abomináveis. A "mui fremosa senhora", que é muito vaidosa, concordou com a ideia.

O planejamento do conclave ficou a cargo dos seus Ministros: os Advérbios de Tempo, Modo e Lugar. Lugar determinou que a reunião realizar-se-ia na Mansão Verde-Amarelo, por ser a maior de suas casas, e assim poder acomodar todo mundo. Advérbio de Tempo determinou que a Assembleia seria agora. Como Advérbio de Modo, que muito mente, disse que estava doente, a forma do conclave ficou meio indefinida.

Houve convocação compulsória para os formadores da estrutura gramatical como os Artigos, as Preposições, as Conjunções, as Flexões, os Verbos Auxiliares e outros, todos soldadinhos pequeninos, mas de tal eficiência que se constituem na guarda de sua Majestade. (...)

As demais palavras foram convidadas, mas não estavam obrigadas a comparecer. Assim, os Arcaísmos decidiram não ir, por serem muito velhos.

No momento fixado foram chegando convocados e convidados. (...)

No momento certo todos tomaram seus lugares. A tribuna de honra fora reservada para a nobreza. Latinos e gregos ocuparam-na.

As palavras de origem latina constituíam a maior parte do plenário. As eruditas sentaram-se logo na frente; depois sentaram-se as populares.  Em seguida sentaram-se as multinacionais:  empréstimos franceses, muito perfumados por Dior; ingleses, usando sua melhor gabardina; italianos, quase todos muito musicais; e alemães, todos muito marciais. Os africanos de diversas regiões cheiravam à comida gostosa e coloriam o plenário com símbolos religiosos. Eu quase esquecia de dizer que, a um canto, estavam Açúcar, Alcatifa e outros árabes de turbante, alguns dos quais representantes da OPEP.

Lá em cima, na galeria, instalaram-se os neologismos, as siglas, as abreviações famosas. Nos corredores e escadas, sentadas pelo chão, estavam as gírias, bem hippies, malcomportadas como elas sós assobiando, conversando, comendo pipoca, mascando chicletes, fumando e botando cinza no chão.

Finalmente foi aberta a sessão. Como Língua Portuguesa não havia tido a devida assessoria de seu Ministro, Advérbio de Modo, não sabia bem como encaminhar os trabalhos. Um pouco titubeante, ela começou solicitando que quem não fosse completamente brasileiro se retirasse. Foi um alvoroço. Levantou-se todo mundo. Só ficaram sentadas uma meia dúzia de palavras que, embora nuas, estavam revestidas de  muita brasilidade. Eram as de origem indígena. Jacaré cutucou Jaguar e ambos riram da mancada da bela senhora. (...)

Língua Portuguesa pensou: "Assim não dá", resolveu pedir que se apresentassem uma a uma as palavras estrangeiras para contar sua história. Assim, ela teria condições de julgar.

A primeira a apresentar-se foi Xícara, que disse ser natural pura, mas não sabia bem se do México ou da América Central (palavras não conhecem fronteiras). Disse que vivia bem em seu rincão natal, quando um espanhol dela usou e abusou. O mesmo fizeram muitos de seus compatriotas que por ela se apaixonaram. Então, ela saiu de casa para viver com os espanhóis. Mas esses latinos volúveis logo se cansaram de sua beleza. Como estava longe de casa, ela entrou pela porta do Brasil, onde foi muito bem recebida, e assim foi ficando por aqui. Lembrou até que causou confusão na Academia Brasileira de Letras, quando discutiram sua grafia x ou ch. Então ela disse:

          "Andei, virei, mexi e parei aqui
         Sou tão vernácula quanto você
         —Sou um símbolo nacional
         Quem me rejeitar
         xicrinha de café não vai mais tomar".

         Língua Portuguesa ficou perplexa. Não se havia dado conta de tão grande verdade. Concedeu imediatamente vernaculania à palavra. A aclamação foi geral.

         Quem sabe, talvez devêssemos tomar café em xícara com Ch.

         Aí... Futebol, sempre com a bola no pé, deu com o foot no ball e pediu a palavra. Levantou-se muito inglês, posudo, com o respaldo do Banco de Londres e da rainha, e com a aquiescência da Seleção, reivindicando que já tinha grafia própria. Que mais lhe faltava? Disse que se fosse banido não mais se faria jogo no Brasil. (...)

         Língua Portuguesa, perdendo a postura e a compostura, quase perdeu também o rebolado. Ficou nervosa. Em menos de um momento, concedeu vernaculania à palavra.

         O triunfo desses itens lexicais estimulou outros tantos. Piano levantou-se, liderando seus compatriotas, alguns bem famosos como Chau e Pizza, e reivindicou para os italianos o direito à vernaculania.

         O tumulto que se seguiu foi geral. Saionara, Sputnik, Garçon e muitas outras palavras, cada qual liderando um contingente de compatriotas, gritaram por greve.

         Língua Portuguesa ficou atordoada. Viu-se diante de uma guerra sonora tão calamitosa que, se não fosse controlada rapidamente, desencadearia uma mudez continental. Muito doidona, enfurecida pela pressão dos súditos fiéis e vencida pelos argumentos incontestáveis dos componentes de seu próprio corpo, nomeou a Linguística interventora. Esta, embora sob protestos, deu fim à baderna. Pôs os pontos nos is explicando à mui formosa senhora toda a complexidade de sua estrutura. Ela compreendeu. Sorriu, deu de ombros e, assumindo sua própria natureza, dissolveu a Assembleia. Os súditos mais fiéis ficaram a ver navios e a Língua evoluiu, entrando por uma perna de pinto e saindo por uma perna de pato.


(PALÁCIO, Adair Pimentel. Apud: CARVALHO, Nelly.
Empréstimos lingüísticos. São Paulo, Ática, 1989.)

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