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domingo, 31 de maio de 2015

A língua brasileira



A LÍNGUA BRASILEIRA



A questão da língua que se fala, a necessidade de nomeá-la, é uma questão necessária e que se coloca impreterivelmente aos sujeitos de uma dada sociedade de uma dada nação. Porque a questão da língua que se fala toca os sujeitos em sua autonomia, em sua identidade, em sua autodeterminação. E assim é com a língua que falamos: falamos a língua portuguesa ou a língua brasileira?
Esta é uma questão que se coloca desde os princípios da colonização no Brasil, mas que adquire uma força e um sentido especiais ao longo do século XIX. Durante todo o tempo, naquele período, o imaginário da língua oscilou entre a autonomia e o legado de Portugal. De um lado, algumas vozes defendiam nossa autonomia, propugnando por uma língua nossa, a língua brasileira. De outro, os gramáticos e eruditos consideravam que só podíamos falar uma língua, a língua portuguesa, sendo o resto apenas brasileirismos, tupinismos, escolhos ao lado da língua verdadeira. Temos, assim, em termos de uma língua imaginária, uma língua padrão, apagando-se, silenciando-se o que era mais nosso e que não seguia os padrões: nossa língua brasileira.
Assim, em 1823, por ocasião da Assembleia Constituinte, tínhamos pelo menos três formações discursivas: a dos que propugnavam por uma língua brasileira, a dos que se alinhavam do lado de uma língua (padrão) portuguesa e a formação discursiva jurídica, que, professando a lei, decidia pela língua legitimada, a língua portuguesa.
Embora no início do século XIX muito se tenha falado da língua brasileira, como a Constituição não foi votada, mas outorgada por D. Pedro, em 1823, decidiu-se que a língua que falamos é a língua portuguesa. E os efeitos desse jogo político, que nos acompanha desde a aurora do Brasil, nos fazem oscilar sempre entre uma língua outorgada, legado de Portugal, intocável, e uma língua nossa, que falamos em nosso dia a dia, a língua brasileira. (...)
Isso quer dizer que até hoje não decidimos se falamos português ou brasileiro. Embora a cultura escolar se queira, muitas vezes, esclarecedora em sua racionalidade e moderna em sua abertura, acaba sempre se curvando à legitimidade da língua portuguesa que herdamos e, segundo dizem, adaptamos às nossas conveniências, mas que permanece em sua forma dominante inalterada, intocada: a língua portuguesa. E quem não a fala, ainda que esteja no Brasil, que seja brasileiro, erra, é um mal falante, um marginal da língua. É, pois, impressionante como a ideologia da língua pura, a verdadeira, faz manter o imaginário da língua portuguesa.


ORLANDI, Eni P. A língua brasileira. In:
Ciência e Cultura, vol. 57, n.°
2. São Paulo, abril/junho de 2005, pp. 29-30. Adaptado.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Calor do cão, dias de cão



Calor do cão, dias de cão


Às noites abafadas e mal-dormidas seguem manhãs secas e tardes tórridas. Sem trégua para o corpo, quem não rogou por chuva ou sombra nesta estação atipicamente escaldante? E quem, sem encontrar o frescor que procura, não praguejou: “Calor do cão!”? Mas o verão de 2013-2014 não será marcado tão-somente pelos recordes de temperatura. O ar está mais do que quente. Está carregado de uma perigosa escalada de corrosão do tecido social: briga de torcidas em Joinville; rebelião e assassinatos em presídio do Maranhão; criação de grupos de justiceiros no Rio; incêndios em série de ônibus em São Paulo; a ação dos black blocs e a morte do repórter cinematográfico Santiago Andrade. Os tempos que correm são dias de cão.
Calor do cão e dias de cão. Não é coincidência que as duas expressões se encontrem nesta época de temperaturas inclementes. Elas foram forjadas juntas há mais de dois milênios, sob o sol mediterrâneo. Os gregos antigos perceberam haver uma relação entre o calor escaldante e o humor humano. Erraram na causa. Mas criaram um vigoroso simbolismo.
Para eles, a explicação estava nos céus e não na natureza do homem. O cachorro em questão era a constelação do Cão Maior e sua principal estrela, Sírius, a mais brilhante do firmamento (próxima às Três Marias). Os gregos notaram que Sírius, também conhecida como Estrela Cão, sumia por cerca de 70 dias. E, pouco antes do verão, voltava a aparecer no leste, já na alta madrugada.
A conclusão a que aqueles homens chegaram foi de causa e efeito: a estrela com maior fulgor se aproximava do sol nascente e o esquentava. Sírius provocava, então, a estação cálida, o calor do cão. Os gregos acreditavam ainda que aquele período era marcado pela influência maligna do astro celeste: fraqueza de ânimo, tentações da carne e pestilências. Eram os dias de cão.
O Ocidente herdou as duas expressões e as manteve vivas geração após geração. Elas, afinal, continuam a dizer muito. O homem é essencialmente o mesmo desde sempre. Sofre os efeitos da natureza, a despeito da civilização que construiu. E o abafamento do clima continua a ser um potencial catalisador de comportamentos extremados, bestiais.
Talvez seja exagero dizer que o verão brasileiro é a causa dos dias de cão. Mas, se não há explicações certeiras para o diagnóstico, ao menos é possível recorrer a metáforas climáticas para apontar o remédio. É hora de esfriar os ânimos. De andar pela sombra.
Ou, para quem preferir, é tempo de procurar alguma luz na escuridão, como a das estrelas na noite escura. E de lembrar que os homens e suas paixões vão passar, mas que elas continuarão lá no alto – milênio após milênio.

Fernando Martins