BOAS VINDAS

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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A despedida de Rubem Alves



A despedida de Rubem Alves

Se dizendo cansado e velho, o escritor dá um basta aos deveres da vida e escreve sua última crônica ao Jornal Folha de S.Paulo.


Triste! Rubem Alves se despede de seus leitores em sua última crônica ao Jornal Folha de S.Paulo. Ele afirma: "Resolvi, por decisão própria, parar de escrever em Cotidiano". Logo na primeira linha nos perguntamos a razão, os motivos que o levaram a tal decisão. Nós leitores, muitas vezes, somos românticos, julgamos que somos protagonistas desta estranha relação que mantemos com os escritores que gostamos, veneramos com ardor. Então, por que não fomos consultados por este "racional abandono"?
Assim, ele inicia sua explicação, um tanto confusa, para os fiéis leitores de sua coluna: "Devo ter perdido o juízo. Minha decisão contraria um dos dois maiores sonhos de cada escritor. Primeiro, o sonho de ser um best-seller. Encontrar algum livro seu nas prateleiras da livraria Laselva, nos aeroportos. Confesso: sou vítima dessa vaidade. Mas não aprendo a lição. Nos aeroportos, vou sempre visitar a Laselva na esperança de lá encontrar um dos meus livros. Saio sempre desapontado".
Pensamos nos escritores como seres idealistas, que criam situações e personagens à imagem e semelhança de nós mesmos, criaturas angustiadas que esperam uma palavra, talvez até uma resposta que nos aqueça o coração. Pensar no nobre Rubem Alves como alguém que deseja ver seus livros em livrarias populares de aeroportos, como tantos best-sellers prontos para serem devorados facilmente, sem reflexões ou degustações vagorosas é, de fato, frustrante. A confessa "pitada de narcisismo" do escritor é perturbadora, até surpreendente porque soa banal, como algo de todos nós, de todos os dias. Nós leitores, realmente, idealizamos nossos ídolos, heróis das mágicas palavras!
Justificando sua decisão, Rubem Alves pede socorro ao grande, senão maior escritor. Ele diz: "Fernando Pessoa tem um poema que diz assim: "Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo, tenho dó delas..." E ele se pergunta se "não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas..." Respondo: Sim. Há um cansaço. A velhice é o tempo do cansaço de todas as coisas. Estou velho. Estou cansado. Já escrevi muito. Mas, agora, meus 78 anos estão pesando. E como acontece com as estrelas, há sempre a obrigação de brilhar.
Quanta melancolia na forma como o poema de Fernando Pessoa foi descrito. A luz que faz as estrelas luzirem é aquela que nos faz acordar todos os dias e enfrentar o "cansaço das coisas, de todas as coisas..." Fácil? Com certeza não é. Insisto que cansaço faz parte de todos os momentos e de todas as fases deste incerto viver. Ficamos mais cansados com a velhice? Nascemos já cansados de tudo; da espera, da saudade, da morte e como diz Rubem Alves, os anos pesam. Mas até as estrelas são vítimas da vaidade, por que o escritor não seria?
Escrever, para ele, passou a ser uma obrigação, já que implica necessariamente em brilhar, assim como as estrelas.
Refletindo sobre a obrigação que pesa, Rubem Alves, convida novamente Fernando Pessoa. Parece que suas palavras não são suficientes, há que trazer um ilustre alguém para ajudá-lo na decisão: "Ah, a frescura na face de não cumprir um dever... Que refúgio o não se poder ter confiança em nós...". Ele diz: "Perco o sono atormentado por deveres, pensando no que tenho de escrever. Sinto - pode ser que não seja assim, mas é assim que eu sinto-que já disse tudo. Não tenho novidades a escrever. Mas tenho a obrigação de escrever quando minha vontade é não escrever".
A confissão do escritor nos faz pensar no vazio da alma, aquela sensação de que não há nada mais a fazer ou a dizer ou a escrever. Letras, palavras e frases já não fazem sentido. Personagens, nada falam, são inexpressivos. Sendo assim, só resta ficar com o silêncio, tentando extrair alguma coisa das entranhas, porque da superfície é o "nada" que surge.
 Continuando pela obrigação da escrita ele denuncia aquilo que nós leitores fazemos questão de ignorar. Ele diz: "O tempo dos jornais é o hoje, as presenças. Mas minha alma é movida pelas ausências: nos jornais, não há lugar para ressurreições".
O tempo dos dias atuais é fugidio, escorre pelas mãos, quando achamos que o capturamos, ele se esvai. Nada permanece, as relações se vão, logo seremos esquecidos, não importa o nosso nível de importância. Como disse Ruy Castro em sua coluna no jornal a Folha de S. Paulo na matéria "Nomes que passam": "Acho que a memória do nome de Steve Jobs mal sobreviverá ao fim da década [...] É o destino dos inventores. Seus inventos ficam ou não. Mas eles se evaporam". É lamentável dizer, mas Ruy Castro tem razão.
Rubem Alves traz a reflexão de Drummond sobre Cecília Meireles: "Não me parecia criatura inquestionavelmente real; por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me sempre a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Por onde erraria a verdadeira Cecília, que, respondendo à indagação de um curioso, admitiu ser seu principal defeito 'uma certa ausência do mundo'"?
Com isso o escritor desabafa: "Deve ser alguma doença que ataca preferencialmente os velhos e os poetas. A Cecília descrevia o tempo da sua avó com 'uma ausência que se demorava'. E Rilke se perguntava: 'Quem assim nos fascinou para que tivéssemos um olhar de despedida em tudo o que fazemos?' O sintoma dessa doença é aquilo que a Cecília disse: uma certa ausência do mundo".
Padecer de uma "ausência do mundo" como patologia da velhice é uma incoerência. Como já foi dito, talvez com outras palavras, nascemos com "um olhar de despedida". A questão é que não nos damos conta disto. É ilusão pensar que a juventude faz as coisas serem permanentes e a velhice nos leva aos "adeus" constante. A cada dia um novo "adeus" e um velho "olá".
Como se não bastasse os grandes escritores, Rubem Alves nos brinda com o inexplicável: "O místico Ângelus Silésius já havia notado que temos dois olhos, cada um deles vendo mundos diferentes: 'Temos dois olhos. Com um, vemos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro, vemos as coisas da alma, eternas, que permanecem'. Jornais são seres do tempo. Notícias: coisas do dia, que amanhã estarão mortas.
É exatamente por isso que precisamos dos dois olhos. Pela janela de um, vemos as coisas que passam, que nos fazem vaidosos, narcisistas, com um desejo voraz de brilhar continuamente e de abandonar, quando o nosso brilho já não é mais o mesmo. Pela fresta do outro, vemos o inacessível, uma certa substância que fere e nos torna cegos, até para as coisas da alma. Um não vive sem outro, por isso é vida. Quando um se tornar independente do outro, nos separamos da matéria, da carcaça e quem sabe, encontraremos aquilo que chamamos alma.
Rubem Alves finaliza tristemente: "E é por isso vou parar de escrever: porque estou velho, porque estou cansado, porque minha alma anda pelos caminhos do Robert Frost, porque quero me livrar dos malditos deveres que me dão ordens desde que me conheço por gente..."
Assim passa mais um herói, talvez não tão herói como imaginávamos.

Publicado na Folha online

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Penalidade máxima



Penalidade máxima

Fernando Sabino


Houve um tempo em que ele era moço e ia à praia. Agora era um homem de meia-idade, paletó e gravata, de regresso do trabalho, andando ao longo do mar. Lá na areia o futebol ia animado. Deteve-se, ficou olhando. Futebol de areia era uma coisa que ele nunca chegaria a entender: não tinha graça, a bola não pulava, ganhava efeito. E onde já se viu jogar descalço? Lembrava-se das pesadas chuteiras de seu tempo, com rodelas de couro no tornozelo, cordões compridos dando várias voltas em torno do pé. E os cravos na sola, deste tamanho! De meter medo nas bolas altas...
Sorriu, ficou olhando; é verdade que esses meninos de hoje fazem miséria. Olha só como aquele mata a bola no peito, controla no joelho e vai levando a bichinha no ar. Mas chute forte como os de antigamente eles não têm. No seu tempo...
Ia se afastando, depois de acompanhar um último lance do jogo lá na areia, quando um chute espirrado atirou a bola cá fora na rua e ela veio rolando até seus pés. Olhou para um lado e para outro: algum conhecido ali por perto, era uma vez a sua compostura. Não vendo ninguém, ajeitou cuidadosamente a pelota na marca do pênalti, para cobrar a penalidade máxima. Lá embaixo os rapazes aguardavam. Tomou distância, esperou o apito do juiz e, sob o silêncio de expectativa da torcida, deu um pulinho, veio correndo, desferiu o chute. Sensação no Maracanã! Gol do Brasil.
O chute foi realmente perfeito e a bola executou a trajetória pretendida, indo cair na areia, entre os rapazes. Mas a compostura foi por água abaixo: atrás da bola, como a cápsula de um foguete-satélite, seguiu o sapato – sapato de verniz, fora a uma missa de sétimo dia naquela manhã. O sapato ultrapassou a bola e foi cair na areia lambida pelo mar.
Desequilibrado, ele começou a rodopiar, saltitando numa perna só, acabou caindo. Um dos
jogadores pescou o sapato e veio trazê-lo. Ajudou-o a erguer-se:
– O senhor se machucou?
– Não foi nada.
– Antes assim.
– Isso acontece...
O rapaz se despediu cordialmente, dando-lhe um tapinha nas costas. Tentou uma careta jovial, calçou o sapato molhado e saiu chapinhando com ele no asfalto. Fazia força para não capengar – fora como se tivesse querido atirar a distância, não a bola, mas a própria perna! Teria distendido algum tendão? Longe da vista dos jogadores, sentou-se no banco da praia com um gemido. Isso acontece – repetiu para si mesmo, conformado.


Texto publicado na coletânea O mundo é uma bola:
crônicas, futebol & humor. Editora Ática, 2006.


domingo, 27 de janeiro de 2013

(Des)acordo ortográfico: o Brasil piscou, e agora?



(Des)acordo ortográfico: o Brasil piscou, e agora?




A Academia Brasileira de Letras divulgou na quarta-feira uma nota oficial em que lamenta o “retrocesso” do adiamento para 2016 da obrigatoriedade da vigência do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa no país. Afirma que estava pronta para dar início a uma campanha internacional destinada a tornar o português – enfim uma língua única – um dos idiomas oficiais de trabalho da Organização das Nações Unidas (ONU).
Compreende-se a frustração. Decidido por decreto assinado pela presidente Dilma Rousseff no apagar das luzes do ano passado, dias antes do fim do prazo de adaptação previsto anteriormente, o adiamento é um estranho caso de tiro desferido no próprio pé pela diplomacia brasileira.
Esta vinha exercendo um papel consistente de liderança no trabalho de unificar uma língua de 260 milhões de falantes que, mesmo sendo uma só (variações nacionais e regionais são, mais que inevitáveis, bem-vindas), nunca soube se pôr de acordo sobre algo banal como a forma de grafar suas palavras. Internacionalmente, isso não é só um fator de confusão e constrangimento. É sinal de fraqueza. Se um aborígine australiano do último cafundó de Queensland escreve inglês com a mesma grafia de um nova-iorquino, qual é o sentido de nativos de Rio e Lisboa, cidades irmãs, divergirem em seu português?
O trabalho foi difícil, lento, realizado sobre o solo pantanoso de orgulhos e desconfianças ancestrais – para não mencionar a má vontade natural da maioria do público com a ideia de virem esses sabichões mexer no que funciona. O texto do acordo data de 1990, mas só em 2008 foi aprovado pelo Parlamento português.
Sempre considerei o conteúdo do acordo decepcionante sob diversos aspectos. No entanto – fora arroubos de anarquismo que são tentadores para qualquer escritor, raça pouco afeita à deglutição de regras sobre seu instrumento de trabalho – nunca deixei de entender o argumento político de sua validade. Tentando me conformar com as absurdas regras do hífen e com palavras grotescas como “corréu”, eu pensava: foi o acordo possível, paciência. Negociações são assim, perde-se aqui para ganhar ali, vamos em frente. E parecia que íamos mesmo. Agora ninguém sabe se iremos.
O adiamento assinado pela presidente veio, estranhamente, num momento em que o trecho mais incerto e turbulento da jornada já tinha ficado para trás. A custosa adoção do acordo ia adiantada no Brasil, muito à frente dos demais países lusófonos. Pode-se mesmo dizer que era completa: sistema de ensino, imprensa e editoras, hoje todo mundo segue em nosso país a nova ortografia.
Em Portugal, onde o marco inicial da obrigatoriedade já estava fixado em 2016, as resistências eram e são bem maiores. Compreensível. A cultura portuguesa é informada por um sentimento de posse sobre a língua, o que alimenta mágoas diante da liderança brasileira no processo. O fato é que tudo ia caminhando, trancos e barrancos incluídos. O Brasil tinha se tornado um farol na epopeia da unificação.
Agora o farol fraqueja e ameaça se apagar. Os adversários ativos do acordo – mais fortes fora do país, mas nada desprezíveis aqui dentro – podem soltar fogos, espalhar temores sobre o risco imaginário que ele oferece à “diversidade cultural” e protocolar os pedidos de vista do processo e demais recursos protelatórios que têm na manga. E a provável maioria silenciosa que sempre encarou com antipatia a decisão de mexer na língua talvez diga, concordando com aquele meu lado anarquista: “Bem feito”.
O decreto de Dilma tornou bastante concreta a possibilidade de que os setores público e privado do Brasil tenham investido uma fortuna para, em nome da unificação, implementar uma reforma ortográfica que jamais terá validade fora de nossas fronteiras.


Fonte: Veja online
Autor: colunista Sérgio Rodrigues