BOAS VINDAS

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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Beijo na boca


BEIJO NA BOCA


       Uma vez a atriz e cineasta Carla Camuratti declarou, numa entrevista, que um bom beijo é melhor do que uma transa insossa. Quando a escutei dizendo isso, pensei: "então não sou só eu". Estou com Carla: o beijo é a parte mais importante da relação física entre duas pessoas, e se ele não funcionar, pode desistir do resto.
     A Editora Mandarim acaba de lançar um livro que reúne ensaios de diversos intelectuais a respeito do assunto. O nome do livro é O Beijo - Primeiras Lições de Amor, História, Arte e Erotismo. Os autores discutem o beijo materno, o beijo nos contos-de-fadas, o beijo traiçoeiro de Judas, os primeiros beijos impressos em cartazes, o beijo na propaganda, o mais longo beijo do cinema e todas as suas simbologias. Às vezes o livro fica prolixo demais, mas ainda assim é um assunto tentador. Procure-o nas melhores casas do ramo. O livro, porque beijo não está à venda.
     Todo mundo sonha com aquele beijo made in Hollywood, que tira o fôlego e dá início a um romance incandescente. Pena que nem sempre isso aconteça na vida real. O primeiro beijo entre um casal costuma ser suave, investigativo, decente. Aos pouquinhos, no entanto, acende-se a labareda e as bocas dizem a que vieram. Existe um prazo para isso acontecer: entre cinco minutos depois do primeiro roçar de lábios até, no máximo, cinco dias. Neste espaço de tempo, ainda compreende-se que os beijos sejam vacilantes: tratam-se de duas pessoas criando um vínculo e testando suas reações. Mas se a decência persistir, não espere ver estrelinhas na etapa seguinte. A química não aconteceu.
      Beijo é maravilhoso porque você interage com o corpo do outro sem deixar vestígios, é um mergulho no escuro, uma viagem sem volta. Beijo é uma maneira de compartilhar intimidades, de sentir o sabor de quem se gosta, de dizer mil coisas em silêncio. Beijo é gostoso porque não cansa, não engravida, não transmite o HIV. Beijo é prático porque não precisa tirar a roupa, não precisa sair da festa, não precisa ligar no dia seguinte. E sem essa de que beijo é insalubre porque troca-se até 9 miligramas de água, 0,7 grama de albumia, 0,18 de substâncias orgânicas, 0,711 miligrama de matérias gordurosas e 0,45 miligrama de sais, sem contar os vírus e as bactérias. Quem está preocupado com isso? Insalubre é não amar.

(Martha Medeiros)

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Poema em linha reta


        POEMA EM LINHA RETA


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
(Álvaro de Campos, 
heterônimo de Fernando Pessoa)

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Alfabeto concreto


Alfabeto concreto

 

         O A é uma letra com sótão. Chove sempre um pouco sobre o à craseado. O B é um 1 que se apaixonou por um 3. O b minúsculo é uma letra grávida. Ao C só lhe resta uma saída. O ç cedilha, esse jamais tira a gravata. O D é um berimbau bíblico. O e minúsculo é uma letra esteatopigia (esteatopigia, ensino aos mais atrasadinhos, é uma pessoa que tem certa parte do corpo, que fica atrás e embaixo, muito feia). O E ri-se eternamente das outras letras. O F, com seu chapéu desabado sobre os olhos, é um gangster à espera de oportunidade. O f minúsculo é um poste antigo. A pontinha do G é que lhe dá esse ar desdenhoso. O g minúsculo é uma serpente de faquir. O H é uma letra duplex. A parte de cima é muda. Serve também como escada para as outras letras galgarem sentido. O h minúsculo é um dinossauro. O I maiúsculo guarda, em seu porte de letra, um pouco do porte marcial de quando age como algarismo romano.  O i minúsculo é um bilboquê. O J, com seu gancho de pirata, rouba às vezes o lugar do g. O j minúsculo é uma foca brincando com sua bolinha. Vê-se nitidamente que o K é uma letra inacabada. Por enquanto só tem os andaimes. Parece que vão fazer um R. Junto com o k minúsculo o K maiúsculo treina passo de ganso. O L maiúsculo parece um l que extraíram com a raiz e tudo. Mas o l minúsculo não consegue disfarçar que é um número (1) espionando o alfabeto. O M maiúsculo é um gráfico de uma firma demasiado instável. O m minúsculo é uma cadeia de montanhas. O N é um M perneta. No n minúsculo pode-se jogar golfinho com a bolinha do o. O O maiúsculo boceja largamente diante da chatura das outras letras. O o minúsculo é um buraquinho no alfabeto. O P é um d plantando bananeira. O p minúsculo é um q que vem de volta. O Q maiúsculo anda sempre com o laço do sapato solto. O q minúsculo é um p se olhando de costas ao espelho. O R ficou assim de tanto praticar halterofilismo. Sente-se que o S é um cifrão fracassado. O s minúsculo é um cisne tranqüilo. Na balança do T se faz jusTiça. O U é uma ferradura da tipografia, protegendo o galope das idéias. O u minúsculo é um n com as patinhas pro ar. O V é uma ponta de lança. O W são vês siameses. O X é uma encruzilhada. O Y é a taça onde bebem as outras letras. Desapareceu do alfabeto porque se entregou covardemente, de braços pra  cima. O Z é o caminho mais curto, depois da bebida. O z minúsculo é um esse cubista.

(FERNANDES, Millôr. Trinta anos de mim mes-
mo. São Paulo, Círculo do Livro, 1975. p. 14C.)
 

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Versos íntimos


       Versos íntimos



Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

(Augusto dos Anjos)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A revolta das palavras


A revolta das palavras



Língua portuguesa convocou todas as palavras para uma Assembleia Geral. O motivo foi o veemente apelo que lhe fizeram alguns de seus súditos mais fiéis que se vangloriavam de conhecê-la por dentro e por fora.

Ela ia passando faceira em seu gingado natural, engordando uns quilinhos aqui, ao ingerir palavrinhas novas, e emagrecendo acolá como sói acontecer às línguas, que, sendo gulosas por natureza, alimentam-se de gregos e troianos. Mas os súditos fiéis interromperam sua marcha normal para reclamar a deformação que vinha sofrendo sua bela figura, causada, principalmente, por estrangeirismos abomináveis. A "mui fremosa senhora", que é muito vaidosa, concordou com a ideia.

O planejamento do conclave ficou a cargo dos seus Ministros: os Advérbios de Tempo, Modo e Lugar. Lugar determinou que a reunião realizar-se-ia na Mansão Verde-Amarelo, por ser a maior de suas casas, e assim poder acomodar todo mundo. Advérbio de Tempo determinou que a Assembleia seria agora. Como Advérbio de Modo, que muito mente, disse que estava doente, a forma do conclave ficou meio indefinida.

Houve convocação compulsória para os formadores da estrutura gramatical como os Artigos, as Preposições, as Conjunções, as Flexões, os Verbos Auxiliares e outros, todos soldadinhos pequeninos, mas de tal eficiência que se constituem na guarda de sua Majestade. (...)

As demais palavras foram convidadas, mas não estavam obrigadas a comparecer. Assim, os Arcaísmos decidiram não ir, por serem muito velhos.

No momento fixado foram chegando convocados e convidados. (...)

No momento certo todos tomaram seus lugares. A tribuna de honra fora reservada para a nobreza. Latinos e gregos ocuparam-na.

As palavras de origem latina constituíam a maior parte do plenário. As eruditas sentaram-se logo na frente; depois sentaram-se as populares.  Em seguida sentaram-se as multinacionais:  empréstimos franceses, muito perfumados por Dior; ingleses, usando sua melhor gabardina; italianos, quase todos muito musicais; e alemães, todos muito marciais. Os africanos de diversas regiões cheiravam à comida gostosa e coloriam o plenário com símbolos religiosos. Eu quase esquecia de dizer que, a um canto, estavam Açúcar, Alcatifa e outros árabes de turbante, alguns dos quais representantes da OPEP.

Lá em cima, na galeria, instalaram-se os neologismos, as siglas, as abreviações famosas. Nos corredores e escadas, sentadas pelo chão, estavam as gírias, bem hippies, malcomportadas como elas sós assobiando, conversando, comendo pipoca, mascando chicletes, fumando e botando cinza no chão.

Finalmente foi aberta a sessão. Como Língua Portuguesa não havia tido a devida assessoria de seu Ministro, Advérbio de Modo, não sabia bem como encaminhar os trabalhos. Um pouco titubeante, ela começou solicitando que quem não fosse completamente brasileiro se retirasse. Foi um alvoroço. Levantou-se todo mundo. Só ficaram sentadas uma meia dúzia de palavras que, embora nuas, estavam revestidas de  muita brasilidade. Eram as de origem indígena. Jacaré cutucou Jaguar e ambos riram da mancada da bela senhora. (...)

Língua Portuguesa pensou: "Assim não dá", resolveu pedir que se apresentassem uma a uma as palavras estrangeiras para contar sua história. Assim, ela teria condições de julgar.

A primeira a apresentar-se foi Xícara, que disse ser natural pura, mas não sabia bem se do México ou da América Central (palavras não conhecem fronteiras). Disse que vivia bem em seu rincão natal, quando um espanhol dela usou e abusou. O mesmo fizeram muitos de seus compatriotas que por ela se apaixonaram. Então, ela saiu de casa para viver com os espanhóis. Mas esses latinos volúveis logo se cansaram de sua beleza. Como estava longe de casa, ela entrou pela porta do Brasil, onde foi muito bem recebida, e assim foi ficando por aqui. Lembrou até que causou confusão na Academia Brasileira de Letras, quando discutiram sua grafia x ou ch. Então ela disse:

          "Andei, virei, mexi e parei aqui
         Sou tão vernácula quanto você
         —Sou um símbolo nacional
         Quem me rejeitar
         xicrinha de café não vai mais tomar".

         Língua Portuguesa ficou perplexa. Não se havia dado conta de tão grande verdade. Concedeu imediatamente vernaculania à palavra. A aclamação foi geral.

         Quem sabe, talvez devêssemos tomar café em xícara com Ch.

         Aí... Futebol, sempre com a bola no pé, deu com o foot no ball e pediu a palavra. Levantou-se muito inglês, posudo, com o respaldo do Banco de Londres e da rainha, e com a aquiescência da Seleção, reivindicando que já tinha grafia própria. Que mais lhe faltava? Disse que se fosse banido não mais se faria jogo no Brasil. (...)

         Língua Portuguesa, perdendo a postura e a compostura, quase perdeu também o rebolado. Ficou nervosa. Em menos de um momento, concedeu vernaculania à palavra.

         O triunfo desses itens lexicais estimulou outros tantos. Piano levantou-se, liderando seus compatriotas, alguns bem famosos como Chau e Pizza, e reivindicou para os italianos o direito à vernaculania.

         O tumulto que se seguiu foi geral. Saionara, Sputnik, Garçon e muitas outras palavras, cada qual liderando um contingente de compatriotas, gritaram por greve.

         Língua Portuguesa ficou atordoada. Viu-se diante de uma guerra sonora tão calamitosa que, se não fosse controlada rapidamente, desencadearia uma mudez continental. Muito doidona, enfurecida pela pressão dos súditos fiéis e vencida pelos argumentos incontestáveis dos componentes de seu próprio corpo, nomeou a Linguística interventora. Esta, embora sob protestos, deu fim à baderna. Pôs os pontos nos is explicando à mui formosa senhora toda a complexidade de sua estrutura. Ela compreendeu. Sorriu, deu de ombros e, assumindo sua própria natureza, dissolveu a Assembleia. Os súditos mais fiéis ficaram a ver navios e a Língua evoluiu, entrando por uma perna de pinto e saindo por uma perna de pato.


(PALÁCIO, Adair Pimentel. Apud: CARVALHO, Nelly.
Empréstimos lingüísticos. São Paulo, Ática, 1989.)

domingo, 25 de setembro de 2011

Elton Levy


                                  Elton Levy

 

Antes  de vires ao mundo dos mortais,
Já sabíamos teu sexo de homem ditoso;
E então ao nasceres, ó moço formoso,
Trouxeste, então, o que faltava a teus pais.

Inda bem pequenino teu nome escolhi,
Não nome de rei ou de herdeiro sem glória!
Mas um nome que talvez ficará na história;
Teu nome, garotão: Elton Levy!

Faze então dele um nome honrado;
Sem mancha, sem mácula, mas respeitado,
Entre todos aqueles de tua geração.

E quando estiveres entre muitas garotas,
Escolhe a tua entre todas as brotas
E entrega a ela o teu coração.

(Pimentel)

 Poema escrito para homenagear meu filho 
Elton Levy, que aniversariou dia 21.09.11.