BOAS VINDAS

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segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Testemunho



Testemunho



VEJO UMA ARANHA caçar uma mariposa — eis o problema. Mato a aranha? Deixo a aranha viva e salvo a mariposa? Deixo a aranha devorar a mariposa?
O fato se passa numa terça-feira de carnaval, mas não faço alegoria. Não me refiro veladamente a um pierrô malvado que sequestra uma indefesa colombina... É carnaval, mas estou sentado à minha mesa de trabalho e é a trinta centímetros de mim, sob a borda da janela, que se processa esse assassinato.
Detenho-me e observo. A mariposa se agita presa por fios invisíveis, e já da sombra surge a aranha, pequenina, dedilhante. A princípio sou pura curiosidade: a aranha é muito menor que a mariposa, que irá fazer? Aproxima-se, faz uma volta em torno dela, detém-se em certos pontos, move afanosamente as pernas. A mariposa se agita menos, enleada. É quando intervém em mim o sentimento: a aranha vai devorá-la! O seu trabalho agora é sinistro: sobe na mariposa, tece-lhe na cabeça, procura virá-la, muda de posição — upa! — vira-a. Parece um homem trabalhando,
amarrando sua presa.
Ouço distante o rumor de um bloco que passa lá na rua dos fundos. O Rio inteiro está mergulhado na folia, e é como se a aranha aproveitasse essa distração para cometer o seu crime silencioso. Por acaso, um dos habitantes da cidade — eu — ficou em casa, e com isso a aranha não contava. Sou a testemunha. Mais que isso: posso evitar o crime. Bastaria um gesto meu e a mariposa estaria salva. Devo fazê-lo?
Enquanto isso, a aranha continua sua faina sinistra. Agora arrasta a mariposa, já imobilizada, para aquele canto da sombra, sob o parapeito, donde saíra momentos antes. Percebo na aranha uma inteligência quase humana. Pobre mariposa, e o carnaval troando lá fora! Vou salvá-la. Ergo a mão, mas vacilo como uma divindade irresoluta. Um segundo, minha mão onipotente detém-se erguida no ar. Enfim, para que servem as mariposas?
— Para que as aranhas as comam — responde-me a aranha sem interromper seu serviço.
— Sim, mas para que servem as aranhas?
— Para comer as mariposas.
— Ora bolas, mas para que servem as aranhas e as mariposas?
A aranha já não se dignou responder. A essa altura sumira com a mariposa sob o parapeito da janela. Alguém, providencialmente, bate à porta do escritório e me chama à realidade dos homens.


Ferreira Gullar. A estranha vida banal.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 77-8.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O homem que conheceu o amor



O homem que conheceu o amor

(Com correções)

Do alto de seus oitenta anos, me disse: “Na verdade, fui muito amado”. E dizia com tal plenitude como quem dissesse: “Sempre me trouxeram flores, sempre comi ostras à beira-mar”.
Não havia arrogância em sua frase, mas algo entre a humanidade e a petulância sagrada. Parecia um pintor que, olhando o quadro terminado, assina seu nome embaixo. Havia um certo fastio em suas palavras e gestos. Retirava-se de um banquete, satisfeito. Parecia pronto para morrer, já que sempre estivera pronto para amar.
Se eu fosse rei ou prefeito teria mandado erguer-lhe uma estátua. Mas, do jeito que falava, ele pedia apenas que no seu túmulo eu escrevesse: “Aqui jaz um homem que amou e foi amado”. E aquele homem me confessou que amava sem nenhuma coerção. Não lhe encostei a faca no peito cobrando algo. Ele é que tinha a me oferecer. Foi muito diferente daqueles que não confessam seus sentimentos nem mesmo debaixo de um “pau-de-arara”: estão ali se afogando de paixão, levando choques de amor, mas não se entregam. E, no entanto, basta ler-lhes a ficha que está tudo lá: traficante ou guerrilheiro do amor
Uns dizem: “Casei várias vezes”. Outros assinalam: “Fiz vários filhos”. Outro dia li uma revista um conhecido ator dizendo: tive todas as mulheres que quis. Outros, ainda, dizem: “Não posso viver sem fulana (ou fulano)”. Na Bíblia está que Abraão gerou Isac, Isac gerou Jacó e Jacó gerou as doze tribos de Israel. Mas nenhum deles disse: “Na verdade, fui muito amado.”.
Mas quando do alto de seus oitenta anos aquele homem desfechou sobre mim aquela frase, senti-me não apenas como o filho que quer ser engenheiro como o pai. Senti-me um garoto de quatro anos, de calças curtas, se dizendo: “Quando eu crescer que ser um homem de oitenta anos que diga: Amei muito, na verdade, fui muito amado”. Se não pensasse isto, não seria digno daquela frase que acabava de me ser ofertada. E eu não poderia desperdiçar uma sabedoria que levou oitenta anos para se formar. É como seu eu não visse o instante em a lagarta se transformaria em libélula.
Ouvindo-o, por um instante, suspeitei que a psicanálise havia fracassado; que tudo aquilo que Freud sempre disse de que o desejo nunca é preenchido, que se o é, o é por frações de segundos, e que a vida é insatisfação e procura, tudo isto era coisa passada. Sim, porque sobre o amor há muitas frases inquietantes por aí. Bilac nos dizia, salomônico: “Eu tenho amado tanto e não conheço o amor”. O Arnaldo Jabor disse outro dia a frase mais retumbante desde “Independência ou morte!” ao afirmar: “O amor deixa muito a desejar”.
Frase que se pode atualizar: “Eu era amado e não sabia”. Porque nem todos sabem reconhecer quando são amados. Flores despencam em arco-íris sobre sua cama, um banquete real está sendo servido e, sonolento, olha noutra direção.
Sei que vocês vão me repreender, dizendo: “Deveria ter-nos apresentado o personagem, também o queríamos conhecer, repartir tal acontecimento”. E é justa a reprimenda. Porque quando alguém está amando, já nos contamina de jasmins. Temos vontade de dizer, vendo-o passar: “Ame por mim, já que não pode se deter para me amar a mim!” Exatamente como se diz a alguém que está indo à Europa: “Por favor, na Itália, como e beba por mim!”.
Ver uma pessoa amando é como ler um romance de amor. É como ver um filme de amor. Também se ama por contaminação na tela do instante. A estória é do outro, mas passa das páginas e telas para a gente.
Todo jardineiro é jardineiro porque não pode ser flor.
Reconhece-se a cinquenta metros um desamado, um carente. Mas se reconhece a cem metro o bem-amado. Lá vem ele: sua luz nos chega antes de suas roupas e pele. Sinos batem nas dobras de seu ser. Pássaros pousam em seus ombros e frases. Flores estão colorindo o chão em que pisou.
O que ama é um disseminador.
Tocar nele é colher virtudes.
O bem-amado dá a impressão de inesgotável. E é o contrário de Átila: Por onde passa renascem cidades.
O bem-amado é uma usina de luz. Tão necessário à comunidade, que deveria ser declarado um bem de utilidade pública.


(Affonso Romano de Sant’Anna)