BOAS VINDAS

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domingo, 29 de setembro de 2013

As sem-razões do amor

As sem-razões do amor


Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Comprar revista




COMPRAR REVISTA




Parou, hesitante; em frente à banca de jornais. Examinou as capas das revistas, uma por uma. Tirou do bolso o recorte, consultou-o. Não, não estava incluída na relação de títulos, levantada por ordem alfabética. Mas quem sabe havia relação suplementar, feita na véspera? Na dúvida, achou conveniente estudar a cara do jornaleiro. Era a mesma de sempre. Mas a talvez ocultasse alguma coisa, sob a aparência habitual. O jornaleiro olhou para ele, sem transmitir informação especial no olhar, além do reconhecimento do freguês.
Peço? Perguntou a si mesmo. Ou é melhor sondar a barra? 
Como vão indo as coisas?
Vão indo, meio paradas.
Não tem vendido muita revista?
O jornaleiro fitou-o, sério:
Nem todo o dia é dia de vender muita.
Eu sei, mais tem revista e revista ?
Lá isso é.
A lista está completa ?
Que lista?
Das revistas proibidas.
Ah, sim, o listão. O senhor queria que não estivesse completo?
Eu? Perguntei, apenas. Gosto de saber das coisas com certeza. Às vezes a gente pede uma revista que não tem mais, que não pode mais ter à venda, e...
Por isso que perguntei. Não quero grilo, entende?
Entendi.
Nem para o senhor nem para mim, é lógico.
Tá legal.
Além do mais, gosto de cumprir a lei. O senhor também não gosta?
Muito.
Sou assim. Sempre gostei. Cumpro a lei, cumpro o decreto, cumpro o regulamento, cumpro a portaria, cumpro tudo.
Eu também, e daí?
Daí, não estou vendo a revista que eu queria, e fico sem saber se posso querer, se a lei me autoriza a querer minha revista.
Bem, se não está no listão, eu tenho.
E por que não expõe?
Não posso expor tudo ao mesmo tempo. Tenho que mostrar as revistas esportivas, as de palavras cruzadas, as de cozinha, os fascículos de bichos e viagens, as leis de impacto... Como é que sobra lugar?
Compreendo. Mas não achando a revista exposta, receei que ela não pudesse mais circular.
Por quê? Tem muita mulher nua, colorida, página dupla?
Não.
Marmanjo nu, como está na moda?
Também não. De vez em quando publica umas fotos pequeninas, de cenas de filmes ou peças de teatro, com barrigas e pernas de fora. Me interessa é as notícias, é como vai o mundo, e o que se comenta sobre ele. Quero uma revista de ao atualidades.
Por que não disse logo?
Porque tem atualidade e atualidade, então não sei? Pode me vender o Time, ou também ele já foi proibido? Veja bem, não desejo comprometê-lo. E muito menos a mim, é evidente. Mas só quero o Time se o senhor garantir que posso levar ele para casa sem infringir a lei.



(Carlos Drummond de Andrade)


segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O gosto do mal e o mau gosto



O gosto do mal e o mau gosto




                    Na sociedade tecnológica se desfaz a noção de espaço, pois, graças à rapidez das informações, o tempo real exerce tirania sobre o espaço real: o mundo está em cada local. Assumem relevo o imediatismo e a interatividade, em razão de que na civilização da pressa não há lugar para a meditação, para a vivência do hábito da leitura e da análise da realidade, para o aprofundamento de dúvidas existenciais.
                  O habitante do tempo, e não mais do espaço, vive o desenraizamento: está a todo o tempo em toda parte.  Como destinatário de completas informações sobre o acontecido a cada instante, não mais se permitem ao homem o silêncio, o recolhimento, a reflexão, a intimidade. Na época do Orkut e do You Tube se torna público o privado e ocorre a rápida obsolescência do up to date*. A sociedade torna-se histérica à procura do novo que satisfaça, sôfrega na procura de emoções que não sejam virtuais, por meios virtuais.
                  Dentro dessa atmosfera, as relações interpessoais fundam-se apenas na possibilidade de o outro satisfazer necessidades sensíveis. O outro se torna um objeto e logo cada  qual  vira  também objeto do outro, com perda do recíproco respeito. Este quadro moral levou a duas situações dramáticas: o gosto do mal e o mau gosto.
                  O gosto do mal consiste na busca crescente de registros na internet de filmes sobre sevícias, torturas e até assassinatos reais, efetivamente ocorridos, muitas vezes só para serem divulgados. O horror vira espetáculo. Hoje se multiplicam as filmagens ou fotografias com celular de cenas de brutalidade contra as pessoas, para puro e simples divertimento.
                  De outra parte, os meios de comunicação, na busca desenfreada de audiência, recorrem a programações que satisfaçam mais facilmente os instintos do telespectador. Os índices de audiência passam a ser a régua pela qual se faz o juízo positivo ou negativo de um programa televisivo. Rompem-se, na conquista de índices de popularidade, as fronteiras da ética. Instala-se o império do mau gosto. O gosto do mal e o mau gosto são igualmente sinais dos tempos, caracterizados pela decomposição dos valores da pessoa humana, portadora de dignidade só realizável se fixados limites intransponíveis de respeito a si próprio e ao próximo, de preservação da privacidade e de vivência da solidariedade  na  comunhão social. O grande desafio de hoje é de ordem ética: construir uma vida em que o outro não valha apenas por satisfazer necessidades sensíveis.



 (Miguel Reale Junior. O Estado de S.Paulo, A2 Espaço Aberto,
2 de fevereiro de 2008, com adaptações)