BOAS VINDAS

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terça-feira, 3 de setembro de 2013

Critério




Critério



        Os náufragos de um transatlântico, dentro de um barco salva-vidas perdido em alto-mar, tinham comido as últimas bolachas e contemplavam a antropofagia como único meio de sobrevivência.
        Mulheres primeiro! Propôs um cavalheiro.
        A proposta foi rebatida com veemência pelas mulheres. Mas estava posta a questão: que critério usar para decidir quem seria sacrificado primeiro para que os outros não morressem de fome?
        Primeiro os mais velhos sugeriu um jovem.
        Os mais velhos imediatamente se reuniram num protesto. Falta de respeito!
        É mesmo! Disse um. Somos difíceis de mastigar.
        Por que não os mais jovens, sempre tão dispostos aos gestos nobres?
        Somos, teoricamente, os que têm mais tempo para viver disse um jovem.
        E vocês precisarão da nossa força nos remos e dos nossos olhos para avistar a terra disse outro.
        Então os mais gordos e apetitosos.
        Injustiça! Gritou um gordo. Temos mais calorias acumuladas e, portanto, mais probabilidade de sobreviver de forma natural do que os outros.
        Os mais magros?
        Nem pensem nisso! Disse um magro, em nome dos demais.
        Somos pouco nutritivos.
        Os mais contemplativos e líricos?
        E quem entreterá vocês com histórias e versos enquanto o salvamento não chega? perguntou um poeta.
        Os mais metafísicos?
        Não esqueçam que só nós temos um canal aberto para lá disse um metafísico, apontando para o alto e que pode se tornar vital, se nada mais der certo.
        Era um dilema.
        É preciso dizer que esta discussão se dava num canto do barco salva-vidas, ocupado pelo pequeno grupo de passageiros de primeira classe do transatlântico, sob os olhares dos passageiros  de segunda e terceira classes, que ocupavam todo o resto  da  embarcação e não diziam nada. Até que um deles perdeu a paciência e, já que a fome era grande, inquiriu:
        Cumé?
        Recebeu olhares de censura da primeira classe. Mas como estavam todos, literalmente, no mesmo barco, também recebeu uma explicação.
        Estamos indecisos sobre que critério utilizar.
        Pois eu tenho um critério disse o passageiro de segunda.
        Qual é?
        Primeiro os indecisos.
        Esta proposta causou um rebuliço na primeira classe acuada. Um dos seus teóricos levantou-se e pediu:
        Não vamos ideologizar a questão, pessoal!
        Em seguida levantou-se um ajudante de maquinista e pediu calma. Queria falar.
        Náufragas e náufragos começou Neste barco só existe uma divisão real, e é a única que conta quando a situação chega a este ponto. Não é entre velhos e jovens, gordos e magros, poetas e atletas, crentes e ateus... É entre minoria e maioria.
        E, apontando para a primeira classe, gritou:
        Vamos comer a minoria!
        Novo rebuliço. Protestos. Revanchismo, não! Mas a maioria avançou sobre a minoria. A primeira não era primeira em tudo? Pois seria a primeira no sacrifício.
        Não podiam comer toda a primeira classe, indiscriminadamente, no entanto. Ainda precisava haver critérios. Foi quando se lembraram de chamar o Natalino. O chefe da cozinha do transatlântico.
        E o Natalino pôs-se a examinar as provisões, apertando uma perna aqui, uma costela ali, com a empáfia de quem sabia que era o único indispensável a bordo.
      O fim desta pequena história admonitória é que, com toda agitação, o barco salva-vidas virou e todos, sem distinção de classes, foram devorados pelos tubarões. Que como se sabe, não  têm nenhum critério.




(VERÍSSIMO, L. F. O nariz e outras
crônicas. 3.ed. São Paulo: Ática, 1997)


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