BOAS VINDAS

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quinta-feira, 31 de maio de 2012

Trilha de contradições


Trilha de contradições
Lya Luft 

“Convencidos de que pensar dói e de que mudar 
é negativo, tateamos sozinhos no escuro, manada
confusa subindo a escada rolante pelo lado errado”

“Viver é subir uma escada rolante pelo lado que desce.” Já escrevi sobre essa frase. Sim, repito alguns temas, que são parte do meu repertório, pois todo escritor, todo pintor, tem seus temas recorrentes. No alto dessa escada nos seduzem novidades e nos angustia o excesso de ofertas. Para baixo nos convocam a futilidade, o desalento ou o esquecimento nas drogas. Na dura obrigação de ser “felizes”, embora ninguém saiba o que isso significa, nossos enganos nos dirigem com mão firme numa trilha de contradições.
Apregoa-se a liberdade, mas somos escravos de mil deveres. Oferecem-nos múltiplos bens, mas queremos mais. Em toda esquina novas atrações, e continuamos insatisfeitos. Desejamos permanência, e nos empenhamos em destruir. Nós nos consideramos modernos, mas sufocamos debaixo dos preconceitos, pois esta nossa sociedade, que se diz libertária, é um corredor com janelinhas de cela onde aprisionamos corpo e alma. A gente se imagina moderno, mas veste a camisa de força da ignorância e da alienação, na obrigação do “ter de”: ter de ser bonito, rico, famoso, animadíssimo, ter de aparecer – que canseira.
Como ficcionista, meu trabalho é inventar histórias; como colunista, é observar a realidade, ver o que fazemos e como somos. A maior parte de nós nasce e morre sem pensar em nenhuma das questões de que falei acima, ou sem jamais ouvir falar nelas. Questionar dá trabalho, é sem graça, e não adianta nada, pensamos. Tudo parece se resumir em nascer, trabalhar, arcar com dívidas financeiras e emocionais, lutar para se enquadrar em modelos absurdos que nos são impostos. Às vezes, pode-se produzir algo de positivo, como uma lavoura, uma família, uma refeição, um negócio honesto, uma cura, um bem para a comunidade, um gesto amigo.
Mas cadê tempo e disposição, se o tumulto bate à nossa porta, os desastres se acumulam – a crise e as crises, pouca trégua e nenhuma misericórdia. Angústias da nossa contraditória cultura: nunca cozinhar foi tão chique, nunca houve tantas delícias, mas comer é proibido, pois engorda ou aumenta o colesterol. Nunca se falou tanto em sexo, mas estamos desinteressados, exaustos demais, com medo de doenças. O jeito seria parar e refletir, reformular algumas coisas, deletar outras – criar novas, também. Mas, nessa corrida, parar para pensar é um luxo, um susto, uma excentricidade, quando devia ser coisa cotidiana como o café e o pão. Para alguns, a maioria talvez, refletir dá melancolia, ficar quieto é como estar doente, é incômodo, é chato: “Parar para pensar? Nem pensar! Se fizer isso eu desmorono”. Para que questionar a desordem e os males todos, para que sair da rotina e querer descobrir um sentido para a vida, até mesmo curtir o belo e o bom, que talvez existam? Pois, se for ilusão, a gente perdeu um precioso tempo com essa bobajada, e aí o ônibus passou, o bar fechou, a festa acabou, a mulher fugiu, o marido se matou, o filho… nem falar.
Então vamos ao nosso grande recurso: a bolsinha de medicamentos. A pílula para dormir e a outra para acordar, a pílula contra depressão (que nos tira a libido) e a outra para compensar isso (que nos rouba a naturalidade), e aquela que ninguém sabe para que serve, mas que todo mundo toma. Fingindo não estar nem aí, parecemos modernos e espertos, e queremos o máximo: que para alguns é enganar os outros; para estes, é grana e poder, beleza e prestígio; para aqueles, é delírio e esquecimento.
Para uns poucos, é realizar alguma coisa útil, ser honrado, apreciar a natureza, sentir o calor humano e partilhar afeto. Mas, em geral medicados, padronizados, desesperados, medíocres ou heroicos, amorosos ou perversos, nos achando o máximo ou nos sentindo um lixo, carregamos a mala da culpa e a mochila da ansiedade. Refletindo, veríamos que somos apenas humanos, e que nisso existe alguma grandeza. Mas, convencidos de que pensar dói e de que mudar é negativo, tateamos sozinhos no escuro, manada confusa subindo a escada rolante pelo lado errado.


terça-feira, 29 de maio de 2012

Consiga sucesso com as mulheres


“Consiga sucesso com as mulheres…”

PASQUALE CIPRO NETO 

Na publicidade, às vezes as palavras não significam
ou não precisam significar coisa alguma.


DEPOIS DE 29 dias na África do Sul, cobrindo a Copa para a Folha, e de pouco mais de duas semanas em férias, cá estou, de volta à coluna.
É claro que nesse período não me “ausentei” do mundo, muito menos da leitura de sites, jornais etc., o que significa que, lamentavelmente, não deixei de ver/ler pérolas e pérolas. Uma delas acaba de chegar ao e-mail da coluna. Aliás, é o que dá ter e-mail público: a quantidade de bobagens que chegam é inacreditável.
E qual é a tal pérola da vez? Vamos lá, começando pelo “assunto” do e-mail: “Consiga um sucesso incrível com as mulheres!!!”. A fórmula? Vem logo na cabeça da mensagem: “Conquiste usando feromônios!!” (interessante notar que -sabe Deus por quê- agora há um ponto de exclamação a menos…).
E o que serão os benditos “feromônios”? Antes, vamos ao “subtítulo” da mensagem: “Imagine um produto afrodisíaco natural, para atrair mulheres”. Peço ainda um minutinho, para mais um “subtítulo” (que, por aparecer no meio do texto, na linguagem jornalística chamamos de “intertítulo”): “Aumente o seu poder de sedução com as mulheres!” (agora entendi por que no segundo subtítulo há um ponto de exclamação a menos; só não entendi por que não há o sinal em “Imagine um produto…”).
O prezado leitor notou a sequência de verbos (“consiga”, “conquiste”, “imagine”, “aumente”) conjugados no modo imperativo afirmativo? Bem, como se diz nas receitas, separe. Vamos falar disso já, já.
Já sei, já sei. Você quer saber o que vem a ser o tal do feromônio, não? Recorramos ao “Houaiss”: “Substância biologicamente muito ativa, secretada especialmente por insetos e mamíferos, com funções de atração sexual, demarcação de trilhas ou comunicação entre indivíduos”. O dicionário “Houaiss” diz ainda que há a forma variante “ferormônio”.
A esta altura, já me sinto (como sempre) um belo ignorante: se o tal feromônio é secretado por insetos e mamíferos, e nós somos mamíferos… Ou os mamíferos que secretam essa substância são só os “irracionais”? Uma passagem da mensagem talvez explique (ou complique) de vez: “Os feromônios! Fragrância: toque de raízes selvagens”. Que tal?
O fato é que, na linguagem publicitária, muitas vezes as palavras não significam o que significam ou não precisam significar coisa alguma. Quando o termo é técnico ou muito específico (caso de “feromônio”), então, o prato está feito.
Mas deixemos isso para lá e fixemo-nos agora na sequência de verbos no modo imperativo, que, como se sabe, é o modo da ordem, do pedido, do apelo, da súplica. A primeira dessas flexões imperativas é “consiga” (“Consiga um sucesso incrível com as mulheres!!!”). Não lhe parece no mínimo inquietante a ideia de alguém mandar alguém conseguir alguma coisa, sobretudo quando essa coisa é o sucesso com as mulheres, que virá com o simples uso dos tais feromônios, ou seja, que não exigirá esforço algum além do uso das tais substâncias ativas?
Pois é, caro leitor, o truque é velho. Consiste em convencer o possível cliente a comprar determinado produto, dando-lhe “ordens” que não parecem ordens ou missões que serão facilmente cumpridas, desde que se usem os tais miraculosos produtos. A frase final do texto não deixa dúvida: “As mulheres notarão sua presença onde quer que esteja”.
Não foi por acaso que o redator empregou “notarão” (e não “vão notar”), assim como não foi por acaso que, na primorosa “Um Índio”, Caetano Veloso usou “descerá”, “virá”, “pousará” etc. (em vez de “vai descer”, “vai vir”, “vai pousar”): a forma sintética do futuro do presente do indicativo é muito mais contundente do que a composta. A língua e seus poderes… É isso.


domingo, 27 de maio de 2012

Dor


Dor

Só sabe o que é a dor aquele que a está sentindo. Passada a dor, ela fica na memória. Passa a morar no passado
RUBEM ALVES 

GOSTO DA ADÉLIA PRADO por várias razões. É poeta. Tem o jeitão mineiro. E é teóloga. Sempre que ela fala sobre os mistérios do mundo sagrado eu me calo e medito. Quase sempre as palavras dela iluminam as minhas dúvidas. Sugestão para algum estudante que esteja à procura de tema para dissertação: “A Teologia da Adélia Prado”…
Mas hoje peço perdão. Discordo do que ela escreveu. Estava falando sobre a coisa mais terrível que há no mundo, o demônio, e foi isso, mais ou menos, o que ela escreveu. Digo “mais ou menos” porque não sei de cor e não posso consultar os livros dela que estão encaixotados, prontos para uma mudança, que julgo, será a última… Foi isso que acho que ela disse: “O céu será igualzinho a essa vida, menos uma coisa: o medo…” Tanta coisa boa! Não é preciso mais nada. O que está aí chega. Precisa só tirar uma coisa, uma única coisa, e a Terra se transformará no céu. Qual é o nome dessa coisa terrível? Ela responde: o medo.
Concordo. Mas acho que tem coisa pior, que é a causa de todos os medos: a dor. Nunca tive medo de cálculo renal. A despeito de nunca ter tido medo, ele veio, sem pedir licença e sem consultar se eu tinha medo ou não. Foi assim que conheci pela primeira vez a dor do inferno. Cessam todos os pensamentos. O corpo só deseja uma coisa: parar de sentir dor, a qualquer preço.
Dor não tem jeito de explicar. Bernardo Soares diz que tudo o que é sentimento é inexplicável. O artista, para comunicar seus sentimentos inexplicáveis, se vale de um artifício: invoca um sentimento “parecido”.
De que comparação vou me valer para explicar a dor a alguém que não a está sentindo? Só sabe o que é a dor aquele que a está sentindo, no presente. Enquanto a dor está doendo, meu corpo -não minha cabeça- sabe o que ela é. Passada a dor, ela fica na memória. Passa a morar no passado. Mas isso que está na memória não é conhecimento da dor porque o passado não dói. A memória da dor, por terrível que tenha sido, não me dá conhecimento da dor, depois que ela se foi.
Minha memória mais antiga de dor me leva de volta à roça onde vivi quando menino. Lembro-me, mas não sinto. Acho até engraçado. Era dor de dente. A dor fazia ele inchar até ficar do tamanho do universo- e eu, chorando, sem saber contar a minha dor, dizia que tinha inveja das galinhas que não tinham dentes… Foi meu primeiro encontro.
Mais tarde ela voltou sem se anunciar. Não a mesma. Cada dor é única. Chegou bruta, definitiva. Lutei usando as armas que se compram nas farmácias. Inutilmente. Levaram-me (nesse ponto eu já não era dono de mim mesmo; estava à mercê dos outros) então para o hospital. As injeções são mais potentes que os comprimidos. Aplicaram-me seis Buscopan. A dor não tomou conhecimento. Ficou mais forte. Comecei a vomitar. O médico, reconhecendo a derrota dos recursos penúltimos, dirigiu-se à enfermeira e disse o nome do último, nenhum mais forte: “Aplica uma Dolantina nele…”
Ela aplicou. Passados cinco minutos, senti a mais deliciosa sensação que tive em toda minha vida. Não era sensação de nada. Que me importava música, sexo ou flores? Era simplesmente a sensação de não ter dor. Pensei se essa euforia não deveria ser o estado normal da alma, sempre que o corpo não estivesse sentindo dor… Rindo e feliz, brinquei que o Paraíso morava dentro de uma ampola de Dolantina…


sexta-feira, 25 de maio de 2012

O homão


O homão


Alguns anos atrás, escrevi um texto chamado O Mulherão para o Dia Internacional da Mulher. Fez um razoável sucesso, tanto que até hoje esse texto é lido e publicado em diversos veículos de comunicação quando chega março.
Pois cá estamos, novamente, na vizinhança desta data comemorativa, e desta vez minha homenagem vai para o homão, aquele que não tem dia algum no calendário para valorizar seus esforços.
Homão é aquele que tem assistido a ascensão feminina nas empresas, na política, na arte, no esporte e tem achado tudo mais do que justo. Nunca li um artigo de um homem reclamando por as mulheres estarem dominando o mundo (não acredito que escrevi isso!). Ao contrário: os inteligentes (e todo homão é inteligente) estão tendo muito prazer em compartilhar seus gabinetes conosco e não choram pelos cantos caso tenham uma chefe mulher (homão chora, mas chora por amor, não por motivos toscos).
Homão gosta de mulher. Parece óbvio, mas há muitos homens (não homões) que só gostam de mulher para cama, mesa e banho. O homão gosta de mulher para cama, mesa, banho, escritório, livraria, cinema, restaurante, sala de parto, beira de praia, estrada, museu, palco, estádio. E, às vezes, pode nem gostar delas pra cama, mesa e banho, e ainda assim continuar um homão.
Homão é aquele que encara parque no final de semana, faz um jantar delicioso, dá conselho, pede conselho, trabalha até tarde da noite, compensa no outro dia buscando os filhos na escola, dirige o carro, em outras vezes é copiloto, não acha ruim ela ganhar mais do que ele, não acha nada ruim quando ela propõe uma noitada das arábias, recebe amor, dá amor, é bom de contabilidade e sabe direitinho o que significa fifty-fifty.
Homão é aquele que compreende que TPM não é frescura e que reconhece que filhos geralmente sobrecarregam mais as mães do que os pais, então eles correm atrás do prejuízo, aliviando nossa carga com prazer. Homão acha um porre discutir a relação, mas discute. Homão não concorda com tudo o que a gente diz e faz, senão não seria um homão, e sim um panaca, mas escuta, argumenta e acrescenta ideias novas. Homão não fica dizendo que no tempo do pai dele é que era bom, o pai mandava e a mãe obedecia. Homão reconhece as vantagens de estar interagindo com seres do mesmo calibre e não depende de uma arma ou de um carro ultrapotente para provar que é um homão. O homão sabe que não há nada como ter uma grande mulher a seu lado.

Martha Medeiros