BOAS VINDAS

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sábado, 31 de março de 2012

O cego e o publicitário


O cego e o publicitário


Havia um cego sentado na calçada em Paris, com um boné a seus pés e um pedaço de madeira que, escrito com giz branco, dizia: "Por favor, ajude-me, sou cego".  
Um publicitário, da área de criação, que passava em frente a ele, parou e viu umas poucas moedas no boné. Sem pedir licença, pegou o cartaz, virou-o, pegou o  giz e escreveu outro anúncio.
Voltou a colocar o pedaço de madeira aos pés do cego e foi embora.
Pela tarde o publicitário voltou a passar em frente ao cego que pedia esmola. Agora, o seu boné estava cheio de notas e moedas.
O cego reconheceu as pisadas e lhe perguntou se havia sido ele quem reescreveu seu cartaz, sobretudo querendo saber o que havia escrito ali. O publicitário  respondeu:
"Nada que não esteja de acordo com o seu anúncio, mas com outras palavras".
Sorriu e continuou seu caminho. O cego nunca soube, mas seu novo cartaz dizia: “HOJE É PRIMAVERA EM PARIS E EU NÃO POSSO VÊ-LA”.

Lembrando: “Mudar a estratégia quando nada nos acontece, pode trazer novas perspectivas”.

(A.D.)

quinta-feira, 29 de março de 2012

Os amigos


             Os amigos


(Essas pessoas tão necessárias)

Há pessoas que com
uma só palavra
despertam ilusões
e roseirais;
que com um mero sorriso nos olhos
nos convidam a viajar
por outras terras,
nos dão a conhecer toda a
magia do mundo.
Há pessoas que com
Um mero toque
Quebram a solidão,
põem a mesa, servem um banquete
e colocam grinaldas;
que com uma simples viola
fazem uma sinfonia caseira
Há pessoas a quem basta
Abrir a boca
Para tocar nos confins da alma,
Alimentar uma flor,
Inventar sonhos,
Fazer cantar o vinho nas pipas,
Como se fossem a coisa mais simples do mundo.
E assim vamos de braço dado
Com a vida,
Desterrando uma morte solitária,
Pois sabemos que ao virar da esquina
Há pessoas assim,
Tão necessárias.


Hamlet Lima Quintana, Arteplural edições

terça-feira, 27 de março de 2012

Ao mestre, com carinho

Ao mestre, com carinho



Professores transmitem; ensinar, mesmo, quem ensinam são os mestres.
Quem me disse assim foi um hoje amigo que outrora tive como professor – e que logo descobriria tratar-se de genuíno mestre.
Costuma referir que seus mestres foram Borges, García Márquez, Rulfo, Francis Bacon (o pintor), entre outros. Todos esses, teve a sorte de ter podido conhecer pessoalmente, muito embora o fino de seus ensinamentos tenha-lhe alcançado mesmo é através das obras de cada um – assim ao menos o creio.
Que dependamos dos mestres para aprender não torna porém menos importantes os professores. Recentissimamente, desde que me atrevi a empregar-me como um, tenho experimentado (por ora com mais gosto do que desenvoltura, admito) essa nobre (essa ingrata) tarefa. Pode-se até vislumbrar quão importante ela seja, mas sustento que só se compreende o tamanho da responsabilidade no instante em que se pisa numa sala de aula pela primeira vez endossando o jaleco (imaginário, que seja, mas não menos jaleco).
Aliás, por falar em jaleco – não estou de brincadeira – um professor que sinceramente admiro é o Professor Raimundo, da “Escolinha”. Entre o bigodão sisudo e o cenho sempre franzido, sob o capacete alourado da peruca partida no meio, Chico Anysio pôs um olhar austero que, junto com o rouco grave da voz, redundam num dos personagens mais respeitáveis da cultura nacional mais recente.
Pois quem, senão Raimundo Nonato, para lograr conservar os sempre olhares de admiração e reverência de tantos e tão diversos tipos humanos como os daquela sala de aula? Quem, senão Raimundo Nonato, para manter-se firme na tarefa inglória de trabalhar formando pessoas, mesmo que o salário seja ó!?
Confidenciei outro dia a meus amigos que não perco as reprises da “Escolinha” na televisão. Divirto-me imenso, até hoje, com o professor Raimundo Nonato. O mesmo tanto que aprendo, até hoje, com a obra do mestre Chico Anysio.
Aprendo que, da vida, o senso de humor é o sal, Chico. O purgatório lhe festeja.

Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos

domingo, 25 de março de 2012

As palavras


As palavras

(José Saramago)

As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpas. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam... As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras. E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do ‘Disse’ ou ‘Tenho dito’.
Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão e por essa via entram na imortalidade do Verbo. E as palavras escorrem tão fluidas como o "precioso líquido". Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envoltos também num murmúrio manso, represo e conciliador... E tudo isso atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares. Porque as palavras deixaram de comunicar.
Cada palavra é dita para que se não ouça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça. Daí que seja urgente moldar as palavras para que a sementeira se mude em seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do ato.
Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Além do ponto


Além do ponto


Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso. Teve uma hora que eu podia ter tomado um táxi, mas não era muito longe, e se eu tomasse um táxi não poderia comprar cigarros nem conhaque, e eu pensei com força então que seria melhor chegar molhado da chuva, porque aí beberíamos o conhaque, fazia frio, nem tanto frio, mais umidade entrando pelo pano das roupas, pela sola fina esburacada dos sapatos, e fumaríamos beberíamos sem medidas, haveria música, sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o olho dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos. Mas chovia ainda, meus olhos ardiam de frio, o nariz começava a escorrer, eu limpava com as costas das mãos e o líquido do nariz endurecia logo sobre os pêlos, eu enfiava as mãos avermelhadas no fundo dos bolsos e ia indo, eu ia indo e pulando as poças d'água com as pernas geladas. Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era. Começou a acontecer uma coisa confusa na minha cabeça, essa história de não querer que ele soubesse que eu era eu, encharcado naquela chuva toda que caía, caía, caía e tive vontade de voltar para algum lugar seco e quente, se houvesse, e não lembrava de nenhum, ou parar para sempre ali mesmo naquela esquina cinzenta que eu tentava atravessar sem conseguir, os carros me jogando água e lama ao passar, mas eu não podia, ou podia mas não devia, ou podia mas não queria ou não sabia mais como se parava ou voltava atrás, eu tinha que continuar indo ao encontro dele, ou podia mas não queria ou não sabia mais como se parava ou voltava atrás, eu tinha que continuar indo ao encontro dele, que me abriria a porta, o sax gemido ao fundo e quem sabe uma lareira, pinhões, vinho quente com cravo e canela, essas coisas do inverno, e mais ainda, eu precisava deter a vontade de voltar atrás ou ficar parado, pois tem um ponto, eu descobria, em que você perde o comando das próprias pernas, não é bem assim, descoberta tortuosa que o frio e a chuva não me deixavam mastigar direito, eu apenas começava a saber que tem um ponto, e eu dividido querendo ver o depois do ponto e também aquele agradável dele me esperando quente e pronto.
Um carro passou mais perto e me molhou inteiro, sairia um rio das minhas roupas se conseguisse torcê-las, então decidi na minha cabeça que depois de abrir a porta ele diria qualquer coisa tipo mas como você está molhado, sem nenhum espanto, porque ele me esperava, ele me chamava, eu só ia indo porque ele me chamava, eu me atrevia, eu ia além daquele ponto de estar parado, agora pelo caminho de árvores sem folhas e a rua interrompida que eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem nunca ter, hesitava mas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo da cabeça dele até a minha, quem me via assim molhado não via nosso segredo, via apenas um sujeito molhado sem capa nem guarda-chuva, só uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito. Era a mim que ele chamava, pelo meio da cidade, puxando o fio desde a minha cabeça até a dele, por dentro da chuva, era para mim que ele abriria sua porta, chegando muito perto agora, tão perto que uma quentura me subia para o rosto, como se tivesse bebido o conhaque todo, trocaria minha roupa molhada por outra mais seca e tomaria lentamente minhas mãos entre as suas, acariciando-as devagar para aquecê-las, espantando o roxo da pele fria, começava a escurecer, era cedo ainda, mas ia escurecendo cedo, mais cedo que de costume, e nem era inverno, ele arrumaria uma cama larga com muitos cobertores, e foi então que escorreguei e caí e tudo tão de repente, para proteger a garrafa apertei-a mais contra o peito e ela bateu numa pedra, e além da água da chuva e da lama dos carros a minha roupa agora também estava encharcada de conhaque, como um bêbado, fedendo, não beberíamos então, tentei sorrir, com cuidado, o lábio inferior quase imóvel, escondendo o caco do dente, e pensei na lama que ele limparia terno, porque era a mim que ele chamava, porque era a mim que ele escolhia, porque era para mim e só para mim que ele abriria a sua porta.
Chovia sempre e eu custei para conseguir me levantar daquela poça de lama, chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que era necessário um esforço muito grande, era preciso um esforço muito grande, era preciso um esforço tão terrível que precisei sorri mais sozinho e inventar mais um pouco, aquecendo meu segredo, e dei alguns passos, mas como se faz? me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia, não era quase nada, eu mantido apenas por aquele fio invisível ligado à minha cabeça, agora tão próximo que se quisesse eu poderia imaginar alguma coisa como um zumbido eletrônico saindo da cabeça dele até chegar na minha, mas como se faz? eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, ideias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, na mesma porta que não abre nunca.

Caio Fernando de Abreu