BOAS VINDAS

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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O mundo



O MUNDO



A primeira vez que ouvi falar do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum sentido, ainda; de modo que não me interessavam nem o seu começo, nem o seu fim.
Lembro-me, porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio desgrenhadas, e aludiam a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo acontecimento que elas tanto temiam.
Nada disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas; nós, crianças, existíamos apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores do tapete.
Mas, uma noite, levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada, levaram-me à janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que até então não me interessara nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos, pareceu-me, de repente, maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por cima dos telhados? Era uma noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao encontro de sua festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um cometa no céu, como há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão apavoradas? A mim não me causara medo nenhum.
Ora, o cometa desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não se acabou, talvez tenha ficado um pouco triste – mas que importância tem a tristeza das crianças?
Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.


(A. D.)


terça-feira, 30 de outubro de 2012

Eu sou teu livro

Eu sou teu livro

 
           


            Nasci na encosta de um outeiro. E fiquei, dentro em pouco, um pinheiro delgado e elegante. Tão elegante que uma senhora, passando com seus filhos por perto de mim, desejou-me para árvore de natal.
         ― Como ficará lindo carregadinho de presentes e de doces, com as velinhas de cores ― exclamou uma das meninas que acompanhavam a senhora.
        Estremeci até às raízes, pensando que logo me haviam de arrancar para, no grande e festivo dia das crianças, ir adornar o salão de uma escola ou de uma casa abastada.
         Passaram-se, porém, muitos anos e ninguém veio buscar-me para a festa do Natal. Minhas raízes aprofundaram-se mais; meu tronco tornou-se alto e forte; estendi para o céu a ramaria possante, que as tempestades não puderam derribar. Todos os anos as pinhas enfeitavam meus galhos; e, quando amadureciam, aves, animais e homens vinham à minha sombra colher os frutos que se espalhavam pelo chão. Eu era a maior e a mais bela de todas as árvores daquela região.
         Mas o dia funesto chegou. Um homem aproximou-se de mim, olhou-me com atenção de alto a baixo, e fez, a facão, um sinal no meu tronco. Vieram depois operários musculosos, de machado em punho; e logo estava eu deitado no solo, com os ramos partidos. Estava reduzido a um simples madeiro ― eu, o rei dos vegetais de toda aquela redondeza...!
       Arrastaram-me, em seguida, para uma fábrica e reduziram-me a uma polpa branca. Nenhum dos meus camaradas me houvera reconhecido, quando, transformado em alvo lençol, sofria a última demão, a fim de aparecer no mercado sob a forma de papel. Que torturas padeci: os golpes mortíferos do machado, o talho agudo das lâminas que me dilaceravam, o aperto horrível de engrenagens que me esmagavam, o atrito áspero de mós que me pulverizavam, o ardor das drogas que me fizeram pálido... Depois de tudo isso, colocaram-me numa prensa, da qual saí para uma longa viagem.
         Vendeu-me um negociante a um impressor. Fui para uma tipografia, onde novas angústias me esperavam. Puseram-me num prelo, no qual, em giros vertiginosos, palavras e gravuras eram sobre mim estampadas. Dobraram-me depois. Cortaram-me. Coseram-me. Cobriram-me com duas capas de cartão. E eis-me aqui, agora, meu amigo, para ir contigo à escola. 
         Não me maltrates nem me desprezes. Muito sofri para trazer-te a sabedoria dos antigos, as lições da experiência, a expressão dos prosadores e poetas, que enriqueceram tua língua materna e fizeram meigo e suave teu idioma.
         Ama-me e lê-me: eu sou teu livro!
  
(Apólogo de Erasmo Braga)