O céu
na gaveta
Perdemos Plutão? A União Astronômica
Internacional (UAI) expulsou-o da família de planetas, mas ele continua lá
fora, gélido e silencioso como antes. Ciência é investigação, segundo um
método, criatividade e arte.
Quando expurgou Plutão, a UAI não fez ciência:
produziu uma definição, entre outras possíveis, com a finalidade de classificar
e nomear. Nomear é um ato de poder. É um gesto de apropriação intelectual, com
repercussões simbólicas. A UAI não descobriu nenhuma característica nova dos
planetas nem ofereceu alguma teoria inovadora acerca do Sistema Solar. Ela
optou por uma ordem simbólica, excluindo outras. Inicialmente, a hipótese
aventada foi permitir a multiplicação de planetas. A consequência disso seria
destruir a figuração popular de um sistema compacto, que aprendemos a
reconhecer na infância e que nos conecta à vastidão do cosmo. Ao rejeitar essa
destruição, a UAI estava dizendo que o céu deve caber na gaveta.
A solução encontrada é mais do que isso. O
"novo" Sistema Solar apresenta-se como figuração de uma ordem perfeita.
São quatro planetas interiores, pequenos e rochosos, separados de quatro
planetas exteriores, grandes e gasosos, pela vasta faixa de fronteira de um
cinturão de asteroides. A UAI pretendeu sublinhar a gênese comum do Sistema.
Mas, na sua lancinante simetria, o modelo adotado tem propriedades estéticas
que sugerem um arranjo divino.
Não encontrou acolhida a hipótese de conservar
tudo como estava, pelo recurso de batizar de "planetas clássicos" os nove
planetas tradicionais e fechar as portas da família aos intrusos. Essa solução
não pareceu "científica" o suficiente, pois desafiava a lógica
cartesiana: como justificar a condição planetária de Plutão, negando-a a astros
"similares" recentemente descobertos?
A figuração do Sistema Solar tem,
essencialmente, funções de divulgação e educação. A força sugestiva dos nomes
mitológicos dos planetas alia-se a imagens poderosas, como os anéis
saturnianos, para capturar a imaginação das crianças e conduzi-las ao labirinto
de curiosidades no qual podem deparar com o discurso das ciências. O Sistema
Solar deposto cumpria melhor essas funções.
Não perdemos Plutão. Perdemos um sistema que,
além de compacto, apresentava-se como ordem imperfeita e sugeria um ponto de
fuga para a complexidade. Esse ponto era Plutão.
O nono planeta, longínquo e minúsculo, com seu
núcleo parecido com o de um cometa e sua órbita divergente, indagava a simetria
do conjunto e desarmava os espíritos. Ele nos alertava para as limitações do
modelo, como quem aponta uma frase inconclusa. Foi isso que perdemos.
(Demétrio
Magnoli. Folha de S. Paulo,
31/08/2006)
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