BOAS VINDAS

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domingo, 29 de abril de 2012

A catedral


“A catedral”



Entre brumas ao longe surge a aurora,
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu risonho
Toda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a bênção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Põe-se a lua a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu tristonho
Toda branca de luar.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem açoitar o rosto meu.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"


(Alphonsus de Guimaraens, poeta simbolista) 


sexta-feira, 27 de abril de 2012

Quando nosso cérebro sai da linha de montagem


Quando nosso cérebro sai da linha de montagem



O que entendemos por “tempo livre”? Livre de quê? Livre do trabalho. De fato, por um longo tempo, esses dois momentos na vida foram mantidos completamente separados: a produção na fábrica e o consumo em casa.
Essa separação total reinava na velha sociedade industrial, quando 90% dos trabalhadores desenvolviam atividades físicas e repetitivas, como na linha de montagem. Hoje, porém, a ocupação virou algo tremendamente confuso. Isso porque pelo menos 60% dos trabalhadores – de porteiros a publicitários, de atores a cirurgiões – exercem profissões intelectuais, trabalham com a cabeça. Nessa cabeça dificilmente se consegue separar os pensamentos que giram em torno do trabalho dos que se ocupam da família, dos amigos e do divertimento.
Ao voltar para casa no final da jornada, o torneiro deixava sua ferramenta de trabalho – o torno – na fábrica e, portanto, não podia mais trabalhar até a manhã de segunda. Já hoje, a ferramenta principal com a qual operamos, seja no trabalho, seja no tempo livre, é nosso cérebro, que nos acompanha sempre. Por isso mesmo, não sabemos mais ao certo se estamos trabalhando, estudando ou nos divertindo. Por exemplo, quando um jornalista ou professor vão ao cinema, eles fazem isso por simples divertimento ou para enriquecer a própria cultura e exercer melhor sua profissão?
Essa confusão inevitável torna inúteis todos os velhos rituais administrativos e organizacionais inventados para separar, rigidamente, com guardas e cancelas, o dentro do fora, o trabalhar do divertir-se, o operar do aprender. No escritório, em casa, no bar, em nossa vida, dia após dia, encontramos esse amálgama de ação e reflexão.
As empresas que persistem em sua organização fordista – aquela com a linha de montagem idealizada por Henry Ford, em que cada operário faz apenas uma função – representam as células mais conservadoras de toda a sociedade. Pretendem estender hoje aos empregados e às gestões pós-industriais aqueles mesmos preceitos que as indústrias impuseram aos operários no passado. Não satisfeitos em espremer o trabalho entre regras obsoletas, ainda querem aplicá-las ao tempo livre, em que a família, a televisão e a agência de viagens nos agrupam em espécies de pelotões militares. Por isso, dentro em pouco, o cidadão será submetido a uma extensa relação de tarefas minuciosamente programadas, da palestra ao curso de inglês. Privado ao mesmo tempo do sorriso e do brinquedo, o menino já estará pronto para servir ao professor, ao pároco, ao chefe, acossado pela corrida de obstáculos da carreira, aterrorizado pelo medo de ficar para trás e de ser despedido. Não se trata de um medo infundado, porque a sociedade pós-industrial precisa de apenas poucos profissionais criativos e superespecializados. E não sabe o que fazer com a massa de empregados que se tornou inútil diante do progresso tecnológico e da globalização galopante.
Em frente ao rolo compressor das multinacionais, o que pode fazer um único trabalhador intelectual? A psicóloga francesa Corinne Mayer aconselha todos os empregados que desenvolvem trabalhos intelectuais a resistir passivamente, escavando um nicho no sistema organizacional que os oprime. Pede a eles que se refugiem num esconderijo em que possam passar despercebidos, cultivando a própria preguiça, trabalhando o menos possível, evitando conflitos. Eles devem adequar-se docilmente aos ditames organizacionais, isentando-se de responsabilidades, passando a batata quente aos novatos e aos subordinados, sobrevivendo, vegetando e esperando passivamente a morte.
Tenho ódio da preguiça, o suicídio da alma, pois os seres humanos são feitos para criar, não para vegetar. De minha parte, desaconselho a ação individual, destinada a sucumbir de qualquer maneira. O resgate dos trabalhadores intelectuais somente poderá ter sucesso com ações conscientes, organizadas junto com empresas de visão mais ampla. Não para estender as regras do trabalho também ao tempo livre. Mas, muito pelo contrário, para transformar o trabalho em ócio criativo.


(MASI, Domenico de. Quando nosso cérebro sai da
linha de montagem. Época, n.º 436, p. 106, set. 2006.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Pega ladrão, Papai Noel!


Pega ladrão, Papai Noel!

(Marcos Rey)

Ele não era bem um Papai Noel, era mais um Santa Claus, pois trabalhava numa cadeia de lojas multinacional, a Emperor Presentes e Utilidades Domésticas, aquela grande, da avenida. Consta, inclusive, que fez um curso de seis semanas no próprio States para testar e aperfeiçoar sua tendência vocacional, obtendo boa nota, apesar de cantar o "Jingle Bell" com imperdoável sotaque latino-americano. Mas seu visual, mesmo sem uniforme, impressionou favoravelmente a banca examinadora: era gordo, como convém a um Papai Noel; tinha olhos da cor do céu e a capacidade de sorrir durante horas inteiras sem nenhum motivo aparente. Ora, um Papai Noel é isso: uma mancha vermelha que sabe rir e às vezes fala.
Você está ótimo! disse-lhe o chefe da seção de brinquedos. As crianças vão adorá-lo!
Era véspera de Natal e a Emperor andava preocupadíssima com as vendas, inferiores ao ano anterior. E preocupada com outra coisa ainda: o incrível número de furtos, razão por que o Papai Noel além de sorrir e estimular as vendas teria que ser também um olheiro, um insuspeito fiscal de seção.
Ele passeava pelo atraente departamento de brinquedos eletrônicos, juntamente com seu sorriso, e acabara de passar a mão nos cabelos louros de um garotinho, quando viu. Viu o quê? Um homem, e mais que ele, sua mão surrupiando um trenzinho de pilha, imediatamente metido numa bolsa promocinal da Emperor. Interrompendo em meio seu sorriso, Papai Noel deu um passo firme e fez voz de vigia:
Por favor, me deixe ver essa bolsa!
Nem todo susto é paralisante: o homem sem largar a bolsa, saiu em disparada pela seção de brinquedos, empurrando pessoas, chutando coisas, derrubando e pisando em brinquedos. Atrás desse furacão, seguia outro furacão, este encarnado, o Papai Noel aludido, que repetia em cores mais vivas os desastres provocados pelo primeiro. A cena prosseguiu com mais dramaticidade e ruídos na escadaria da Emperor, pois a seção de brinquedos era no sexto andar. No quarto pavimento Papai Noel chegou a grampear o ladrão pelo braço, mas este conseguiu escapar, livrando oito degraus entre o quarto e o segundo andares. Aí, novamente Papai Noel pôs a mão enluvada no fugitivo, mas um grupo de pessoas que saia do elevador poluiu a imagem e ele tornou a ganhar distância.
Na avenida a perseguição teve novos aspectos e emoções. A pista era melhor para corridas apesar de ainda maior o número de pessoas e obstáculos. O ladrão logo à saída da loja chocou-se com uma mulher que carregava mil pacotes, pacotinhos e pacotões. Foram todos para o chão. Um propagandista de longas pernas de pau fez uma aterrissagem forçada, que o aeroporto de Congonhas teria desaconselhado devido ao mal tempo. O Papai Noel também empurrava, esbarrava e derrubava, aduzindo ao seu esforço o clássico "pega ladrão!", um refrão tão comum na cidade que não entendo como ainda não musicaram. Na primeira esquina, quase... Um carro bloqueou a fuga do homem, que ficou hesitante pois seu colorido perseguidor se aproximava em alta velocidade.
Quando o ladrão do brinquedo entrou numa galeria da Barão, os espectadores, digamos assim, tiveram a impressão de que se livraram do Papai Noel. Mas, a câmera 2 logo mostrou o santo velhinho, entrando também na galeria com o mesmo ímpeto dos primeiros fotogramas. Aliás, embora corresse em milhas e o outro em quilômetros, não conseguia alcançá-lo.
Consta que Papai Noel perseguiu o ladrão inclusive pelo Minhocão, de ponta a ponta, onde é proibida a circulação de pedestres. Também sem resultado.
A história, que nem história é, podia acabar aqui, mas prefiro que acabe lá.
Lá, onde?
Naquele quarto de subúrbio.
Aquela noite, o ladrão, à meia-noite em ponto, deu para o filho o belo presente das lojas Emperor, o trenzinho de pilha que tinha luzes diversas e ainda apitava, excessivamente incrementado para qualquer garoto pobre.
O menino, que sabia dos apuros do pai, não recebeu alegremente a maravilha eletrônica.
Papai, o senhor não devia ter comprado.
Mas não comprei.
Ahn?
Ganhei.
De quem?
De Papai Noel, até. Bom cara. Nem precisei pedir. Ele correu atrás de mim e me deu o presente. Disse que a pilha dura três meses. Legal, não?

sábado, 21 de abril de 2012

O romanceiro da Inconfidência

O romanceiro da Inconfidência


Toda vez que um justo grita
Um carrasco o vem calar
Quem não presta fica vivo
Quem é bom, mandam matar
Quem não presta fica vivo
Quem é bom, mandam matar
Foi trabalhar para todos
E vede o que lhe acontece
Daqueles a quem servia
Já nenhum mais o conhece
Quando a desgraça é profunda
Que amigo se compadece?

Foi trabalhar para todos
Mas, por ele, quem trabalha?
Tombado fica seu corpo
Nessa esquisita batalha
Suas ações e seu nome
Por onde a glória os espalha?

Por aqui passava um homem
(E como o povo se ria!)
Que reformava este mundo
De cima da montaria
Por aqui passava um homem
(E como o povo se ria!)
Ele na frente falava
E atrás a sorte corria
Por aqui passava um homem
(E como o povo se ria!)
Liberdade ainda que tarde
Nos prometia
Por aqui passava um homem
(E como o povo se ria!)
No entanto à sua passagem
Tudo era como alegria
Por aqui passava um homem
(E como o povo se ria!)
Liberdade ainda que tarde
Nos prometia

Toda vez que um justo grita
Um carrasco o vem calar
Quem não presta fica vivo
Quem é bom, mandam matar
Quem não presta fica vivo
Quem é bom, mandam matar.

(Cecília Meireles)

quinta-feira, 19 de abril de 2012

A importância do ato de ler


A importância do ato de ler


A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensaiar escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado – e até gostosamente – a “reler” momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo.
Ao ir escrevendo este texto, ia “tomando distância” dos diferentes momentos em que o ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a “leitura” do mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da “palavramundo”.
A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo particular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória –, me é absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e re-vivo, e, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas como se fossem
gente, tal a intimidade entre nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores.
A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço – o sítio das avencas de minha mãe –, o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras. Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto – em cuja percepção me experimentava e, quanto mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber – se encarnavam numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia apreendendo no meu trato com eles nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler.
São Paulo: Cortez, 1989. p. 1. Adaptado.