BOAS VINDAS

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quarta-feira, 11 de abril de 2012

O que quero é fome


O que quero é fome



        Conheço muitos testes de inteligência. Não conheço nenhum teste de sabedoria. É importante saber a diferença entre essas duas, inteligência e sabedoria, frequentemente confundi­das. A inteligência é a nossa capacidade de conhecer e manipular o mundo. Ela tem a ver com o poder. A sabedoria é a graça de saborear o mundo. Ela tem a ver com a felicidade. As escolas se dedicam a desenvolver e avaliar a inteligência. Para isso desen­volveram testes. Os testes avaliam a inteligência dos alunos por meio de números. Mas elas nada sabem sobre a sabedoria, e nem elaboram testes para avaliá-la. Nas escolas e universidades mui­tos tolos são aprovados cum laude. A inteligência é muito impor­tante. Ela nos dá os meios para viver. Mas somente a sabedoria é capaz de nos dar razões para viver. Muitas pessoas se suicidam porque, tendo todos os meios para viver, não tinham as razões para viver.
        Proponho-lhe um teste de sabedoria. Ele é muito simples. O seu aniversário está chegando. Você já não é mais jovem. O espelho lhe revela coisas que você não gostaria de saber. Diante da sua imagem no espelho existe sempre o perigo de que uma magia perversa aconteça, e você seja repentinamente transforma­do em bruxa ou ogro — tal como aconteceu com a madrasta da Branca de Neve. Em desespero, você invoca os deuses. Eles vêm em seu socorro e lhe dizem que atenderão a um desejo seu, a um único desejo. Que súplica você lhes faria?
        Digo-lhe que essa seria a hora da pureza de coração, quando todos os supérfluos têm de ser deixados de lado. "Pureza de coração" — assim disse Kierkegaard, meu querido filósofo solitário, companheiro já morto; por vezes os mortos são com­panhia melhor que os vivos, porque falam menos e ouvem mais —, pureza de coração, ele disse, "é desejar uma só coisa". Digo que isso é sabedoria, mas pode parecer mais coisa de neurótico obsessivo, ficar querendo uma coisa só, o tempo todo. Você entenderá o que digo se você prestar atenção no voo dos pássa­ros. E para ajudá-lo nesse dever de casa, transcrevo o que Camus pensou, ao observá-los. "Se durante o dia o voo dos pássaros parece sempre sem destino, à noite, dir-se-ia reencontrar sempre uma finalidade. Voam para alguma coisa. Assim talvez, na noite da vida..." O texto termina assim, com essas reticências que, segundo Mário Quintana, são o caminho que o pensamento deve continuar a seguir. Assim é o coração. Há momentos na vida em que ele é como o voo dos pássaros durante o dia: oscila em todas as direções, sem saber direito o que quer, ao sabor das dez mil coisas que o fascinam, tão desejáveis, cada uma delas uma taça de prazer. Chega um momento, entretanto, em que é preciso escolher uma direção — é preciso descobrir aquela palavra, aquela única palavra que dá nome ao nosso sofrimento, que nomeia a nossa nostalgia, para que saibamos para onde ir.
        A Adélia Prado passou por esse teste. Disse ela no seu poema "O tempo":
        (...) Descobri que a seu tempo vão me chorar e esquecer. Vinte anos mais vinte é o que tenho. Nesse exato momento do dia vinte de julho de mil novecentos e setenta e seis, o céu é bruma, está frio, estou feia, acabo de receber um beijo pelo correio. Quarenta anos! Não quero faca nem queijo. Quero a fome. (...)

Rubem Alves   (in "Cenas da Vida")

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