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terça-feira, 11 de setembro de 2012

Moto próprio



Moto próprio


Carlos Heitor Cony


Tinha 27 anos e uma motocicleta. Não tinha mais nada nem precisava. Possuía o mundo e todas as pompas do universo porque sentia a moto entre as pernas. Amava a moto e, de moto próprio, só amou a própria moto.
Vivia trepado na moto, correndo pelas estradas, sentindo o trepidar dos 57 cavalos do motor. Era um deus, dono do mundo, dono do próprio destino. Não saía da moto nem para comer nem para beber. Tampouco dormia.
A moto o possuía e ele possuía a moto.
Andava sem itinerário, nunca ia a parte alguma porque se considerava em todas as partes. Adquiriu a onipresença – própria dos deuses – de ser e estar em todos os lugares e modos.
O rapaz virou Deus.
Não se preocupava com o Bem e o Mal. O único mal seria a moto enguiçar ou a gasolina acabar. Mas a moto era eterna, a gasolina jamais acabava. A força das coxas que espremiam a moto entre as pernas era tanta e tamanha que os 57 cavalos não precisavam de outra energia.
O rapaz era a moto e a moto era o rapaz.
O sol ou a chuva em nada afetavam o rapaz ou a moto. De dia ou de noite, a marcha era a mesma, e mesmo o trepidar. As pessoas que, ao longe, viam passar a moto e o rapaz pensavam que era um anjo, ou o próprio Deus descido à Terra.
O rapaz não ligava para a admiração que causava, admiração que se transformou em adoração. Os camponeses, quando viam ou ouviam a moto, ajoelhavam-se à beira das estradas e rezavam, pedindo proteção para as colheitas. Uma lenda logo se formou: por onde o rapaz e a moto passassem, o chão se abriria, fecundo, em frutos e flores.
À noite, as jovens sonhavam que o rapaz e a máquina chegavam. Elas acordavam em orgasmo, o rapaz e a máquina entravam pela carne das virgens.
Foram criados exorcismos específicos, a fim de impedir que as púberes caíssem em sonhos tais. Numa certa região dos Lagos Gelados, após um sonho com o rapaz e a moto, uma virgem pariu uma pequenina motocicleta, de 15 cavalos apenas.
Depois de algum tempo, o rapaz e a moto começaram a preocupar as autoridades. Também os deuses se ocuparam do rapaz e da moto, sentiam que alguma coisa de anormal ocorria no mundo.
Os deuses se reuniram com as autoridades e deliberaram dar um fim ao rapaz e à moto. Era impossível acabar com os dois, ao mesmo tempo. A moto era indestrutível. Nem o fogo nem a água podiam contra ela. E o rapaz, enquanto estivesse em cima da moto, seria indestrutível. Nem o fogo nem a água podiam contra ele.
Então, o mais velho dos deuses sugeriu um acidente que poderia acabar com o rapaz e a própria moto, mas de moto próprio.
Num cair de tarde, o rapaz vacilou diante do sol que se punha no horizonte, à sua frente. Não viu a árvore que tinha galhos para dentro da estrada. A velocidade era grande e o seu corpo foi projetado para a frente e para o alto. Ficou preso nos galhos da árvore. Pelos muitos anos em que vivera trepado na moto, o rapaz continuou de pernas abertas, como se entre elas tivesse, ainda, a sua moto.
Após ter expelido o dono, a moto prosseguiu a marcha desgovernada, para cima e para a frente, de tal modo que, de moto próprio, encravou-se entre as pernas do rapaz. Tamanho o desejo de voltar a ser possuída pelo dono, que penetrou-o sem dor.
De longe, os deuses viram que a moto fora tragada pelo rapaz. E muito se rejubilaram: o rapaz desintegrou-se, desintegrando a moto.
Os deuses providenciaram para que o corpo desaparecesse – única forma de fazer desaparecer, também, a indestrutível moto, que nem o fogo e a água podiam contra ela. Aproveitaram o cair da noite e sepultaram os escombros do rapaz e da moto no túmulo do vento.
As autoridades bateram palmas.
Quando o dia raiou, nada mais havia do rapaz e da moto. O mundo continuou com suas estradas assassinas e suas árvores criminosas.
Os deuses se sentiram recompensados. E as autoridades, depois de muito bater palmas, foram bater as populações vizinhas, cobrando impostos, taxas e demais posturas a que tinham direito pela lei.


(Extraído de: "Primeiras histórias do ano 2000", suplemento
publicado pelo jornal Folha de S.Paulo em 1º/1/2000, p. 4.)


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