Nós, que resistimos aos celulares
Não
sucumbi ao telefone celular. Não tenho e nunca terei um telefone celular. Quando
preciso usar um, uso o da minha mulher. Mas segurando-o como se fosse um grande
inseto, possivelmente venenoso, desconhecido da minha tribo.
Eu
não saberia escolher a musiquinha que o identifica. Aquela que, quando toca, a
pessoa diz “é o meu!”, e passa a procurá-lo freneticamente, depois o coloca no
ouvido, diz “alô” várias vezes, aperta botões errado, desiste e desliga, para
repetir toda a função quando a musiquinha toca outra vez.
Não
sei, a gente escolhe a musiquinha quando compra o celular?
—
Tem aí um Beethoven?
—
Não. Mas temos as quatro estações do Vivaldi.
—
Manda a primavera.
Porque
a musiquinha do seu celular também identifica você. Há uma enorme diferença
entre uma pessoa cujo celular toca, digamos, “Take five” e uma cujo celular
toca Wagner. Você muitas vezes só sabe com quem realmente está quando ouve o
seu celular tocar, e o som do seu celular diz mais a seu respeito do que você
imagina. [...]
Sei
que alguns celulares ronronam e vibram, discretamente, em vez de desandarem a
chamar seus donos com música. Infelizmente, os donos nem sempre mostram a mesma
discrição.
Não
é raro você ser obrigado a ouvir alguém tratando de detalhes da sua intimidade
ou dos furúnculos da tia Djalmira a céu aberto, por assim dizer.
É
como o que nos fazem os fumantes, só que em vez do nosso espaço aéreo ser invadido
por fumaça indesejada, é invadido pela vida alheia. Que também pode ser tóxica.
Não
dá para negar que o celular é útil, mas no caso a própria utilidade é angustiante.
O celular reduziu as pessoas a apenas extremos opostos de uma conexão, pontos
soltos no ar, sem contato com o chão. Onde você se encontra tornou-se irrelevante,
o que significa que em breve ninguém mais vai se encontrar.
E
a palavra “incomunicável” perdeu o sentido. Estar longe de qualquer telefone não
é mais um sonho realizável de sossego e privacidade — o telefone foi atrás.
Não
tenho a menor ideia de como funciona o besouro maldito. E chega um momento em
que cada nova perplexidade com ele torna-se uma ofensa pessoal, ainda mais para
quem ainda não entendeu bem como funciona a torneira.
Ouvi
dizer que o celular destrói o cérebro aos poucos. Nos vejo — os que não sucumbiram,
os últimos resistentes — como os únicos sãos num mundo imbecilizado pelo micro-ondas
de ouvido, com os quais as pessoas trocarão grunhidos pré-históricos, incapazes
de um raciocínio ou de uma frase completa, mas ainda conectados. Seremos poucos
mas nos manteremos unidos, e trocaremos informações. Usando sinais de fumaça.
Disponível
em:
/2012/05/03/nos-que-resistimos-aos-celulares
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