A pedagogia do crime
Existem
textos que são importantes para a compreensão do país em 1 que vivemos. A carta
de Pero Vaz de Caminha. Os Sertões, de Euclides da Cunha. A carta-testamento de
Getúlio Vargas. A estes deveríamos acrescentar um diálogo que, apesar de tosco,
é muito significativo do clima social e emocional em que vivemos. Um vídeo
apreendido pela polícia de Santa Catarina mostra o diálogo entre Rafael Borba –
que tem antecedentes criminais por tráfico de drogas e homicídio, e que está
sendo acusado por sequestro – e seu filho, de quatro anos, e uma sobrinha de
três. A menina porta um revólver de brinquedo. O tio orienta-a a agredir, “dar
tiros” e exigir dinheiro de uma boneca: “Diz pra ela: ‘Cadê meu dinheiro,
boneca?’”. Em seguida, mostra como dar uma coronhada na cabeça da boneca.
Podemos
pensar que este homem é maluco – um sádico, no mínimo. Mas será que é esta a imagem
que ele tem de si próprio? Provavelmente não. Ali está o homem, deitado na
rede, conversando com o filho e com a sobrinha, um retrato comum da vida
familiar brasileira (e de outros países, mas a rede identifica o lugar).
Exercita a vocação de educador, comum a pais e a tios; talvez até mais que a de
tios, se considerarmos a importância que o termo “tio” tem para as crianças. E
usa uma boneca como recurso educativo, o que, de novo, não é tão fora do comum:
bonecos e bonecas são usados nos cursos de Medicina para demonstrar manobras de
ressuscitação.
O
que o homem ensina, contudo, a todos nós impressiona e horroriza. Simplesmente
mostra como fazer um assalto, e um assalto que não exclui a violência: o
recurso à coronhada é apresentado como possível e desejável, alternativa em
caso de resistência da vítima. Mas, de novo, aquilo que a nós revolta, parece
normal para o improvisado mestre: está iniciando seus pequenos discípulos na
profissão que pratica, tal como o fazem há milênios os profissionais. É – para
ele – uma profissão igual às outras, uma profissão que, na atual conjuntura,
adquiriu foros de legitimidade. “Cadê o meu dinheiro, boneca?” é o que ele pergunta,
não “Cadê o teu dinheiro?”. O dinheiro está com a boneca apenas por acaso; esse
dinheiro tomou um rumo errado, coisa que o assaltante, pela violência,
corrigirá. Daí o revólver. Detalhe importante: essa arma certamente foi
adquirida numa loja de brinquedos, num supermercado. Armas assim são usadas por
milhares, por milhões de crianças, que desta maneira imitam, senão os próprios
pais (muitos dos quais, mesmo não sendo assaltantes, têm armas em casa), então
os filmes que são exibidos
23 todos os dias na
tevê, sem falar nos videogames. Nos filmes também não faltam frases violentas,
intimidadoras. Nem coronhadas.
(...)
É
este o cenário que queremos? Se não é, temos que começar a tomar providências
imediatas para isso, usando a lição que o professor do crime nos dá: precisamos
falar mais com nossos filhos, precisamos transmitir-lhes afetos, precisamos
mostrar lhes que o caminho da violência não leva a nada. Bonecas, que funcionam
como modelos para futuras mamães, e papais, devem ser acariciadas e beijadas.
Bonecas devem ouvir historinhas encantadoras. Mesmo porque, se há pergunta que
as bonecas não sabem responder é: “Cadê o meu dinheiro?”.
(Moacyr Scliar)
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