Eu sou teu livro
Nasci na encosta de
um outeiro. E fiquei, dentro em pouco, um pinheiro delgado e elegante. Tão
elegante que uma senhora, passando com seus filhos por perto de mim, desejou-me
para árvore de natal.
―
Como ficará lindo carregadinho de presentes e de doces, com as velinhas de
cores ― exclamou uma das meninas que acompanhavam a senhora.
Estremeci
até às raízes, pensando que logo me haviam de arrancar para, no grande e
festivo dia das crianças, ir adornar o salão de uma escola ou de uma casa
abastada.
Passaram-se,
porém, muitos anos e ninguém veio buscar-me para a festa do Natal. Minhas
raízes aprofundaram-se mais; meu tronco tornou-se alto e forte; estendi para o
céu a ramaria possante, que as tempestades não puderam derribar. Todos os anos
as pinhas enfeitavam meus galhos; e, quando amadureciam, aves, animais e homens
vinham à minha sombra colher os frutos que se espalhavam pelo chão. Eu era a
maior e a mais bela de todas as árvores daquela região.
Mas
o dia funesto chegou. Um homem aproximou-se de mim, olhou-me com atenção de
alto a baixo, e fez, a facão, um sinal no meu tronco. Vieram depois operários
musculosos, de machado em punho; e logo estava eu deitado no solo, com os ramos
partidos. Estava reduzido a um simples madeiro ― eu, o rei dos vegetais de toda
aquela redondeza...!
Arrastaram-me,
em seguida, para uma fábrica e reduziram-me a uma polpa branca. Nenhum dos meus
camaradas me houvera reconhecido, quando, transformado em alvo lençol, sofria a
última demão, a fim de aparecer no mercado sob a forma de papel. Que torturas
padeci: os golpes mortíferos do machado, o talho agudo das lâminas que me
dilaceravam, o aperto horrível de engrenagens que me esmagavam, o atrito áspero
de mós que me pulverizavam, o ardor das drogas que me fizeram pálido... Depois
de tudo isso, colocaram-me numa prensa, da qual saí para uma longa viagem.
Vendeu-me
um negociante a um impressor. Fui para uma tipografia, onde novas angústias me
esperavam. Puseram-me num prelo, no qual, em giros vertiginosos, palavras e
gravuras eram sobre mim estampadas. Dobraram-me depois. Cortaram-me.
Coseram-me. Cobriram-me com duas capas de cartão. E eis-me aqui, agora, meu
amigo, para ir contigo à escola.
Não
me maltrates nem me desprezes. Muito sofri para trazer-te a sabedoria dos
antigos, as lições da experiência, a expressão dos prosadores e poetas, que
enriqueceram tua língua materna e fizeram meigo e suave teu idioma.
Ama-me
e lê-me: eu sou teu livro!
(Apólogo de Erasmo Braga)
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