Lua-de-mel
(crônica)
Paulo Mendes Campos
No hotel da pequena cidade, enquanto
eles se amavam, a tarde se estampou de vez. Era uma tarde ontológica.
Na casa de saúde da encosta, um
doente do peito se lembrou das vibrações antigas de um domingo de cristal.
Uma andorinha pousou no fio: dó;
mais uma andorinha: ré; terceira andorinha: mi. Fá sol lá si ficaram dançando
na piscina de oxigênio do coro da igreja, onde um frade franciscano ensaiava um
novíssimo Tantum Ergo.
As vacas ficaram imóveis,
construídas de argila.
Entre as tranças da figueira, o
menino via a vila distante, e o fruto da figueira de repente ficou doce.
O chefe da estação olhou a sineta
sobre a plataforma bem varrida, e nesse exato instante ouviu uma pancada clara
(mas sempre se pode pensar que foi o vento).
Na cadeia sem sol o criminoso de
morte acabava de esculpir a canivete um doloroso Cristo de pinho.
O contabilista da fábrica enramava
longas operações, sonegando imposto de renda com prazer.
A lavadeira grávida depositou a
trouxa sobre a pedra lisa e umedeceu a boca na fonte.
Sobre o pontilhão passava o trem,
levando homens e porcos; dentro do trem tinha um bispo; dentro do bispo voavam borboletas;
dentro das borboletas tinha uma corda (que move o mundo).
O prefeito municipal redigia um
efusivo telegrama de congratulações ao excelentíssimo senhor governador.
O filho do promotor fez um gol com
uma laranja seca.
O farmacêutico concedeu com
resignação que seria muito difícil conhecer a Bavária, de onde emigrara seu
avô, e a farmácia ganhava depressa um frescor quase insuportável.
A preta Mariana comprou sapatos
brancos na loja.
Hans Oliveira Bagenhoff, na classe,
começou a ler, sincopado: "Ora, entre Enganim e Cesareia, num casebre
desgarrado na prega dum cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada
mulher que todas as mulheres de Israel."
Bufando, um Ford de bigodes esperava
o burro passar; o burro, lentamente, esperava passar um pensamento cheio de
capim.
O padre secular, vigário de cima,
abriu os braços com espanto e acreditou em Deus.
O riozinho repetia de cor a lição de
Heráclito.
O pássaro preto sobre o mourão da
cerca não conseguia assustar o verde pasto.
A pedra do bodoque de Bicudo
esborrachou o tiziu.
Uma aurora dúbia bailava nos cabelos
da menina moça mais sensível da cidade (e ninguém sabia).
A mulher do carpinteiro sorriu para
o marido da mulher do sapateiro.
Os legumes cresciam bonitos em todas
as hortas, sem exceção pois só os de origem teutônica plantavam no município.
O médico lavou as mãos na bacia
esmaltada.
O velho neurastênico da cidade,
antigo professor no Rio chorou à janela ao ver passar, cantando, o carroceiro.
O sargento se reconheceu no cão
sarnento e deu-lhe um pontapé.
A praça era clara como um pensamento
claro, e lenta como a lentidão.
Ninguém se dava conta: do pólen, das
raízes, das germinações para o bem e o pior.
Havia cortinados limpos, ladrilhos
lavados, pão fresco no forno e tédio nas paróquias.
Um urubu pousou no cimo do telhado
do hotel onde ele e ela se amavam (inútil: o amor é eterno).
Eles se amavam, isto é, eles se
reduziam e ampliavam-se.
Exercitavam-se. Aprendiam-se.
Compunham-se. Desvirtuavam-se.
Desabriam-se. Sobre-excediam-se.
Transpunham-se. Inventavam-se.
Pressupunham-se. Imparcializavam-se.
Acolhiam-se. Desviviam-se.
Pastavam-se. Intercediam-se.
Subtendiam-se. Verdeciam-se.
Desentristeciam-se. Revertiam-se.
Entreconheciam-se. Corrigiam-se.
Afluíam-se. Definiam-se.
Consentiam-se. Compungiam-se.
Ingeriam-se. Traduziam-se.
Reagradeciam-se. Surpreendiam-se.
Engrandeciam-se. Resolviam-se.
Socorriam-se. Riam-se. Mordiam-se.
Dissolviam-se. Imortalizavam-se.
Encapelavam-se. Inflacionavam-se.
Recuperavam-se. Participavam-se.
Esperançavam-se. Frutificavam-se.
Escravizavam-se. Libertavam-se.
Animalangelizavam-se.
O amor visivelmente é cego.
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