Cornita
Luís
Fernando Veríssimo
─ Pai, o que é cornita?
─ Como é que se escreve?
─ Ce, o, erre, ene, i, te, a.
O pai pensou um
pouco. Não podia dizer que não sabia. O garoto há muito descobrira que o pai
não era o homem mais forte do mundo. Precisava mostrar que, pelo menos, não era
dos mais burros. Perguntou como é que a palavra estava usada.
─ Aqui diz, “a cornita da igreja...” - respondeu o garoto.
─ Ah, esse tipo de cornita. É um ornamento, na forma de corno, que fica
do lado do altar.
Pra que que serve?
─ Pra, ahn, nada. É um símbolo.
─ Ah.
─ Pai, usei “cornita” numa redação e a professora disse que a palavra não
existe.
─ O quê? Mas que professora é essa?
─ Ela diz que nunca ouviu falar.
─ Pois diga para ela
que “cornita”, embora não faça mais parte da arquitetura canônica, era muito
usada nas igrejas medievais.
─ Tá.
─ Pai, a professora continua dizendo que “cornita” não existe. E diz que
também não se diz “arquitetura canônica”.
─ Preciso ter uma conversa com essa professora. Essa educação de hoje...
─ Não quero discutir
com a senhora. Mas também não quero ver meu filho duvidando do próprio pai.
Para começar, minha senhora, aqui está o livro que meu filho estava lendo. E
aqui está a palavra. “Cornita”.
─ Deixe eu ver. Obviamente, era para ser “cornija”. É um erro de
imprensa.
─ O quê?
─ Um erro de revisão. “Cornija”. Ornamentação muito usada na arquitetura
antiga. “Cornita” não existe.
─ Pai, vamos pra casa... .
─ Um momentinho. Um
momentinho! Claro que eu sei o que é “cornija”. Mas existem as duas palavras.
“Cornija” e “cornita”. Duas coisas completamente diferentes.
─ Então me mostre “cornita” no dicionário.
─ Ora, no dicionário. E a senhora ainda confia nos nossos dicionários?
─ Pai, vamos embora...
─ O que é isto, pai?
─ Um pequeno tratado
que fiz para a sua professora, aquela mula, ler. Dezessete páginas. Pouca
coisa. Nele, traço desde a origem etimológica da palavra “cornita”, no
sânscrito, até a sua simbologia no ritual da Igreja antes do concílio de
Trento, incluindo o número de vezes em que o termo aparece na obra de Vouchard
de Mesquieu sobre a arquitetura canônica. E sublinhei “arquitetura canônica”,
para a mula aprender a jamais desmentir um pai.
─ Certo, pai.
─ Pai....
─ O que é?
─ A professora leu o seu tratado.
─ E então?
─ Mandou pedir desculpas. Diz que o senhor é um homem muito erudito.
─ Erudito.
─ Erudito. Mandou pedir desculpas. A burra era ela.
─ Está bem, meu
filho. Pelo menos agora ela sabe com quem está tratando.
Valera a pena.
Valera até as noites perdidas inventando os dados do tratado. Sabia que
acabaria convencendo a mulher com um ataque maciço de erudição, mesmo falsa.
Vouchard de Mesquieu. Aquele fora o golpe de mestre. Vouchard de Mesquieu.
Perdera uma hora só para encontrar o nome certo. Mas estava redimido.
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