Com
estas florestas de arranha-céus que vão crescendo, muita gente pensa que
passarinho é coisa só de jardim zoológico; e outras até acham que seja apenas
antiguidade de museu. Certamente chegaremos lá; mas por enquanto ainda existem
bairros afortunados onde haja uma casa, casa que tenha um quintal, quintal que
tenha uma árvore. Bom será que essa árvore seja a mangueira. Pois nesse vasto palácio
verde podem morar muitos passarinhos.
Os
velhos cronistas desta terra encantaram-se com canindés e araras, tuins e
sabiás, maracanãs e “querejuás todos azuis de cor finíssima...”. Nós esquecemos
tudo: quando um poeta fala num pássaro, o leitor pensa que é leitura...
Mas
há um passarinho chamado bem-te-vi. Creio que ele está para acabar. E é pena,
pois com esse nome que tem - e que é a sua própria voz - devia estar em todas
as repartições e outros lugares, numa elegante gaiola, para no momento oportuno
anunciar a sua presença. Seria um sobressalto providencial e sob forma tão
inocente e agradável que ninguém se aborreceria.
O
que me leva a crer no desaparecimento do bem-te-vi são as mudanças que começo a
observar na sua voz. O ano passado, aqui nas mangueiras dos meus simpáticos
vizinhos, apareceu um bem-te-vi caprichoso, muito moderno, que se recusava a
articular as três sílabas tradicionais do seu nome, limitando-se a gritar:
“...te-vi!...te-vi!”, com a maior irreverência gramatical. Como dizem que as
últimas gerações andam muito rebeldes e novidadeiras, achei natural que também
os passarinhos estivessem contagiados pelo novo estilo humano. Logo a seguir, o
mesmo passarinho, ou seu filho ou seu irmão - como posso saber, com a folhagem
cerrada da mangueira? - animou-se a uma audácia maior. Não quis saber das duas
sílabas, e começou a gritar apenas daqui, dali, invisível e brincalhão:
“...vi!...vi!...vi!...”, o que me pareceu divertido, nesta era do twist.
O
tempo passou, o bem-te-vi deve ter viajado, talvez seja cosmonauta, talvez
tenha voado com o seu team de futebol - que se não há de pensar de
bem-te-vis assim progressistas, que rompem com o canto da família e mudam os
lemas dos seus brasões? [...]
Mas
hoje ouvi um bem-te-vi cantar. E cantava assim: “Bem-bem-bem...te-vi!” Pensei:
“É um nova escola poética que se eleva da mangueira!...” Depois, o passarinho
mudou. E fez: “Bem-te-te-te...vi!” Tornei a refletir: “Deve estar estudando a
sua cartilha... Estará soletrando...” E o passarinho: “Bem-bem-bem...te-te-te...vi-vi-vi!”
Os
ornitólogos devem saber se isso é caso comum ou raro. Eu jamais tinha ouvido
uma coisa assim! Mas as crianças, que sabem mais do que eu, e vão diretas aos assuntos,
ouviram, pensaram e disseram: “Que engraçado! Um bem-te-vi gago”.
(É:
talvez não seja mesmo exotismo, mas apenas gagueira...)
(Cecília Meireles)
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