“A carta anônima”
Um belo dia a gente acorda e recebe uma carta, sem o nome do remetente. Abre o envelope, mais curioso pra saber de quem é do que propriamente o que ela diz. Verifica que não tem assinatura. Começa a ler logo nas primeiras linhas e conclui que deve ser uma dessas “cartas anônimas” que a gente tanto ouve falar mas nunca espera receber um dia. No princípio começa a achar graça; depois fica irritado, tem vontade de rasgar; mas não rasga; não é por nada não, mas é só pra saber até onde esse cretino quer chegar uma vez que ele (ou será ela?) tem certeza que a gente vai ler até o finzinho, não uma, mas duas, três, quatro, diversas vezes. Não é por nada não, que a gente não vai dar bola pra uma carta anônima, mas é só pra ver se a gente descobre quem mandou, e só lá pela quinta ou sexta vez é que a gente começa a ter certeza; não bem certeza mas quase, porque se uma pessoa podia saber de tudo aquilo, mas essa pessoa seria incapaz de se sujeitar a um papel triste desses, isto nunca, só se a pessoa contou pra outra. Mas que sordidez, que covardia, por que não assinou a carta pra gente ir conferir pessoalmente todas aquelas acusações? Pensando bem, tem certas coisas tão secretas que só uma pessoa muito íntima poderia saber; tem outras que são exageradas, mas tem outras que são mentira, tudo mentira, não é possível, ou será que é? Já que a pessoa sabe de tantas coisas, quem sabe ela sabe de muita coisa que nem a gente sabe, afinal de contas dizem que o marido é o último a saber, e daí? ora, e daí que pode ser verdade e se há possibilidade da gente admitir que pode ser verdade, está criada a dúvida. Vai ver que o autor da carta queria isso mesmo, criar a dúvida; portanto o melhor é não dar bola; ridículo, dar bola pra uma carta que nem sequer tem uma assinatura. Carta anônima não quer dizer coisa alguma, não significa nada, quer é causar pânico, quer criar intriga. Mas desta vez não vai conseguir nada, o melhor mesmo é a gente rasgar e jogar na cesta. Mas antes disso não custa nada mostrar a um amigo só pra gente se divertir, pra mostrar que não liga pra essas coisas, que tem mentalidade avançada, que tem segurança de si mesmo, que tem personalidade; isso sempre conforta, encontrar alguém que sirva de apoio à opinião da gente em relação à gente mesmo. Está aí, isso não é uma ideia muito recomendável mas a gente sempre faz, afinal de contas só no amigo dizer pra gente que aquilo é ridículo, já conforta, já dissipa a dúvida e é isso o que interessa. Mas vai a gente depois tirar a dúvida da cabeça do amigo...
(Leon Eliachar. O homem ao quadrado. Círculo do livro, São Paulo, 1976)
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