Notícia de jornal
Leio
no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca,
trinta anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno
centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e duas horas,
para finalmente morrer de fome. Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos
de comerciantes, uma ambulância do Pronto-Socorro e uma radiopatrulha foram ao
local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que acabou morrendo de
fome.
Um homem que morreu de fome. O comissário
de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era de alçada da
Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem
morreu de fome.
O corpo do homem que morreu de fome foi
recolhido ao Instituto Médico-Legal sem ser identificado. Nada se sabe dele,
senão que morreu de fome.
Um homem morre de fome em plena rua, entre
centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um
mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho,
uma coisa – não é um homem. E os outros homens cumprem seu destino de passantes,
que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem
que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo
piedade, ou sem olhar nenhum. Passam, e o homem continua morrendo de fome,
sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.
Não é da alçada do comissário, nem do
hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que
eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.
E o homem morre de fome. De trinta anos
presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a
insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências
às autoridades. As autoridades nada puderam fazer senão remover o corpo do
homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada
mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.
E ontem, depois de setenta e duas horas de
inanição, tombado em plena rua, no centro mais movimentado da Cidade do Rio de
Janeiro, um homem morreu de fome.
Morreu de fome.
Fernando Sabino
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