As crianças trabalhadoras
Enxergar o trabalho
infantil na TV com menos glamour atenuaria a mercantilização da infância.
A mão-de-obra
infantil na TV cresce a cada dia, o que parece não incomodar ninguém. Embora já
existam, na opinião pública, sinais de recusa à exploração do trabalho de crianças
nas olarias, nas carvoarias ou na agricultura, a participação de atores mirins em propagandas, assim como nas
novelas e nos filmes, não é encarada como trabalho. É como se fosse uma
premiação. Qualquer mãe ficaria orgulhosa de ter o seu filhinho fazendo papel
de mamífero numa campanha de leite. Ela dificilmente entenderia a coisa como um
tipo de exploração injusta. Para o senso
comum, estar na televisão é participar do estrelato, e no estrelato, acredita-se,
não há relações trabalhistas.
O fato é que o público aceita e aplaude os programas e as
propagandas estrelados por crianças. Como essa que acaba de entrar no ar, de um
automóvel. Um grupo de garotos em idade
de frequentar o jardim-de-infância troca suas impressões sobre os carros dos
pais. O do meu pai é alemão, anuncia um, o do meu pai é japonês, emenda outro, e
cada um vai contando sua vantagem. No final, um deles garante que o carro do
pai reúne todas as nacionalidades, pois
é um modelo
mundial, portanto melhor que
todos os outros. O automóvel surge na cena, e todos os coleguinhas ficam
embasbacados.
Mas então quer dizer que alunos de jardim-de-infância funcionam
para vender até produtos para consumidores adultos? Sim, os publicitários já sabem
disso há tempos: crianças pesam, e muito, na decisão de compra dos adultos.
Pais compram carros e outras mercadorias na esperança de comprar junto a
admiração do filho. Quanto aos filhos, motivados pela TV, repercutem a
propaganda dentro de casa: “Compra, paiê!”.
É muito gracioso, espontâneo e bem dirigido o elenco da campanha do tal carro. Da mesma forma, são encantadores
os protagonistas mirins dos comerciais de margarina, de sabão em pó, até de
brinquedo. E provavelmente a aparição episódica em propagandas como essas não
seja prejudicial à criança. Proibi-la seria uma violência absurda. Mas o telespectador e a sociedade não devem
esquecer que se trata de um trabalho, que deve ser tratado e regulado enquanto
tal. Enxergar esse tipo de trabalho com um pouco menos de glamour contribuiria
bastante para atenuar essa consentida mercantilização da infância.
O maior poeta brasileiro sonhou com uma canção
que pudesse acordar os homens e adormecer as
crianças. Atualmente, o uso de meninos e meninas na TV faz o contrário:
desperta (e instrumentaliza) o consumismo nas crianças para inebriar os
adultos.
(Eugênio
Bucci – Revista Veja, 26/03/97)
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