A BORBOLETA AMARELA
Rubem Braga
"Era uma borboleta. Passou
roçando em meus cabelos, e no primeiro instante pensei que fosse uma bruxa ou
qualquer outro desses insetos que fazem vida urbana; mas, como olhasse, vi que
era uma borboleta amarela.
Era na esquina de Graça Aranha
com Araújo Porto Alegre; ela borboleteava junto ao mármore negro do Grande
Ponto; depois desceu, passando em face das vitrinas de conservas e uísques; eu
vinha na mesma direção; logo estávamos defronte da A.B.I. Entrou um instante no
hall, entre duas colunas; seria um jornalista? – pensei com certo tédio.
Mas logo saiu. E subiu mais alto,
acima das colunas, até o travertino encardido. Na rua México eu tive de esperar
que o sinal abrisse: ela tocou, fagueira, para o outro lado, indiferente aos
carros que passavam roncando sob suas leves asas. Fiquei a olhá-la. Tão amarela
e tão contente da vida, de onde vinha, aonde iria? Fora trazida pelo vento das
ilhas – ou descera no seu vôo saçaricante e leve da floresta da Tijuca ou de algum
morro – talvez o de São Bento Onde estaria uma hora antes, qual sua idade? Nada
sei de borboletas. nascera, acaso, no jardim do Ministério da Educação? Não; o
Burle Marx faz bons jardins, mas creio que ainda não os faz com borboletas – o
que, aliás, é uma boa idéia. Quando eu o mandar fazer os jardins de meu
palácio, direi: Burle, aqui sobre esses manacás, quero uma borboleta amare...
Mas o sinal abriu e atravessei a rua correndo, pois já ia perdendo de vista a
minha borboleta.
A minha borboleta! Isso, que
agora eu disse sem querer, era o que eu sentia naquele instante: a borboleta
era minha – como se fosse meu cão ou minha amada de vestido amarelo que tivesse
atravessado a rua na minha frente, e eu devesse segui-la. Reparei que nenhum
transeunte olhava a borboleta; eles passavam, devagar ou depressa, vendo
vagamente outras coisas – as casas, os veículos ou se vendo –, só eu vira a
borboleta, e a seguia, com meu passo fiel. Naquele ângulo há um jardinzinho,
atrás da Biblioteca Nacional. Ela passou entre os ramos de acácia e de uma
árvore sem folhas, talvez um "flamboyant"; havia, naquela hora, um
casal de namorados pobres em um banco, e dois ou três sujeitos espalhados pelos
outros bancos, dos quais uns são de pedra, outros de madeira, sendo que estes são
pintados de azul e branco. Notei isso pela primeira vez, aliás, naquele
instante, eu que sempre passo por ali; é que a minha borboleta amarela se
tornava sensível às cores.
Ela borboleteou um instante sobre
o casal de namorados; depois passou quase junto da cabeça de um mulato magro,
sem gravata, que descansava num banco; e seguiu em direção à Avenida. Amanhã eu
conto mais."
(segunda parte)
"Eu ontem parei a minha
crônica no meio da história da borboleta que vinha pela rua Araújo Porto
Alegre; parei no instante em que ela começava a navegar pelo oitão da
Biblioteca Nacional.
Oitão, uma bonita palavra. Usa-se
muito no Recife; lá, todo mundo diz: no oitão da igreja de São José, no oitão
do Teatro Santa Isabel... Aqui a gente diz: do lado. Dá no mesmo, porém oitão é
mais bonito. Oitão, torreão.
Falei em torreão porque, no
ângulo da Biblioteca, há uma coisa que deve ser o que se chama um torreão. A
borboleta subiu um pouco por fora do torreão: por um instante acreditei que ela
fosse voltar, mas continuou ao longo da parede. Em certo momento desceu até
perto da minha cabeça, como se quisesse assegurar-se de que eu a seguia, como
se me quisesse dizer: "estou aqui".
Logo subiu novamente, foi
subindo, até ficar em face de um leão... sim, há uma cabeça de leão, aliás há
várias, cada uma com uma espécie de argola na boca, na Biblioteca. A pequenina
borboleta amarela passou junto ao focinho da fera, aparentemente sem o menor
susto. Minha intrépida, pequenina, vibrante borboleta amarela! pensei eu. Que
fazes aqui, sozinha, longe de tuas irmãs que talvez estejam agora mesmo
adejando em bando álacre na beira de um regato, entre moitas amigas – e aonde
vais sobre o cimento e o asfalto, nessa hora em que já começa a escurecer, oh
tola, oh tonta, oh querida pequena borboleta amarela! Vieste talvez de Goiás,
escondida dentro de algum avião; saíste no Calabouço, olhaste pela primeira vez
o mar, depois...
Mas um amigo me bateu nas costas,
me perguntou "como vai bichão, o que é que você está vendo aí?" Levei
um grande susto, e tive vergonha de dizer que estava olhando uma borboleta; ele
poderia chegar em casa e dizer: "encontrei hoje o Rubem, na cidade, parece
que estava caçando borboleta".
Lembrei-me de uma história de
Lúcio Cardoso, que trabalhava na Agência Nacional: Um dia acordou cedo para ir
trabalhar; não estava se sentindo muito bem. Chegou a se vestir, descer, andar
um pouco junto da Lagoa, esperando condução, depois viu que não estava mesmo
bem, resolveu voltar para casa, telefonou para um colega, explicou que estava
gripado, até chegara a se vestir para ir trabalhar, mas estava um dia feio, com
um vento ruim, ficou com medo de piorar – e demorou um pouco no bate-papo,
falou desse vento, você sabe (era o noroeste) que arrasta muita folha seca, com
certeza mais tarde vai chover etc., etc..
Quando o chefe do Lúcio perguntou
por ele, o outro disse: "Ah, o Lúcio hoje não vem não. Ele telefonou,
disse que até saiu de casa, mas no caminho encontrou uma folha seca, de maneira
que não pode vir e voltou para casa."
Foi a história que lembrei
naquele instante. Tive – por que não confessar? – tive certa vergonha de minha
borboletinha amarela. Mas enquanto trocava algumas palavras com o amigo,
procurando despachá-lo, eu ainda vigiava a minha borboleta. O amigo foi-se. Por
um instante julguei, aflito, que tivesse perdido a borboleta de vista. Não. De
maneira que vocês tenham paciência: na outra crônica, vai ter mais história de
borboleta.
(última parte)
"Mas, como eu ia dizendo, a
borboleta chegou à esquina de Araújo Porto Alegre com a Avenida Rio Branco;
dobrou à esquerda, como quem vai entrar na Biblioteca Nacional pela escada do
lado, e chegou até perto da estátua de uma senhora nua que ali existe; voltou;
subiu, subiu até mais além da copa das árvores que há na esquina – e se perdeu.
Está claro que esta é a minha
maneira de dizer as coisas; na verdade, ela não se perdeu; eu é que a perdi de
vista. Era muito pequena, e assim, no alto, contra a luz do céu esbranquiçado
da tardinha, não era fácil vê-la. Cuidei um instante que atravessava a Avenida
em direção à estátua de Chopin; mas o que eu via era apenas um pedaço de papel
jogado de não sei onde. Essa falsa pista foi que me fez perder a borboleta.
Quando atravessei a Avenida ainda
a procurava no ar, quase sem esperança. Junto à estátua de Floriano, dezenas de
rolinhas comiam farelo que alguém todos os dias joga ali. Em outras horas, além
de rolinhas, juntam-se também ali pombos, esses grandes, de reflexos verdes e
roxos no papo, e alguns pardais: mas naquele momento havia apenas rolinhas.
Deus sabe que horários têm esses bichos do céu.
Sentei-me num banco, fiquei a ver
as rolinhas – ocupação ou vagabundagem sempre doce, a que me dedico todo dia
uns 15 minutos. Dirás, leitor, que esse quarto de hora poderia ser mais bem
aproveitado. Mas eu já não quero aproveitar nada; ou melhor, aproveito, no meio
desta cidade pecaminosa e aflita, a visão das rolinhas, que me faz um vago bem
ao coração.
Eu poderia contar que uma delas
pousou na cruz de Anchieta; seria bonito, mas não seria verdade. Que algum dia
deve ter pousado, isso deve; elas pousam em toda parte; mas eu não vi. O que
digo, e vi, foi que uma pousou na ponta do trabuco de Caramuru. Falta de respeito,
pensei. Não sabes, rolinha vagabunda, cor de tabaco lavado, que esse é Pai do
Fogo, Filho do Trovão?
Mas essa conversa de rolinha,
vocês compreendem, é para disfarçar meu desaponto pelo sumiço da borboleta
amarela. Afinal arrastei o desprevenido leitor ao longo de três crônicas, de
nariz no ar, atrás de uma borboleta amarela. Cheguei a receber telefonemas:
"eu só quero saber o que vai acontecer com essa borboleta". Havia, no
círculo das pessoas íntimas, uma certa expectativa, como se uma borboleta amarela
pudesse promover grandes proezas no centro urbano. Pois eu decepciono a todos,
eu morro, mas não falto à verdade: minha borboleta amarela sumiu. Ergui-me do
banco, olhei o relógio, saí depressa, fui trabalhar, providenciar, telefonar...
Adeus, pequenina borboleta amarela."
Rio,
setembro de 1952