(Crônica
sem título)
Graciliano
Ramos
O
vendedor de jornais é o tipo mais despreocupado e alegre do mundo.
Tem
uma alma de pássaro.
Claro
está que nos não referimos ao carrancudo português que, em meio de uma chusma
de folhas metodicamente dispostas, passa os dias sentado, com as pernas
cruzadas no ponto de reunião da Rua do Ouvidor com o Largo de São Francisco, na
Brahma, nas portas dos cafés da Avenida, em toda a parte. Não aludimos tampouco
ao grave italiano de bigodeira espessa nem ao "carcamano" que, de
bolsa a tiracolo, apregoa uma algaravia "à la diable", a Nôtizia e o
Zêculo.
Queremos
falar do pequenino garoto de dez anos, o brasileirito trêfego, ativo, tagarela
como uma pega, travesso como um tico-tico.
Está sempre a rir, sempre a cantar. Canta o
dia inteiro, num tom arrastado, apregoando as revistas que vende.
Por
aqui, por ali, vai, vem, corre, galopa, atravessa as ruas com uma rapidez de
raio, persegue os veículos, desliza entre os automóveis como uma sombra. Parece
invulnerável.
É
assim uma espécie de pensionista do público - arrebata as pontas de charuto que
se jogam à rua e surrupia, para revender, os jornais que se deixa esquecidos
nos bancos dos passeios. Se pode à socapa, deita a mão a alguma dessas
pirâmides de frutos que sedutoramente se elevam às portas das mercearias.
É
extraordinária a celeridade com que ele se transporta de um lugar para outro.
Anuncia no Leme, na Tijuca, em Niterói, um jornal que a gente pensa ainda estar
no prelo. Dir-se-ia que tem asas.
Fuma,
bebe aguardente, pragueja, solta pilhérias torpes, pisca os olhos
maliciosamente à passagem das mulheres, canta trovas obscenas com a música da
"Cabocla de Caxangá".
Torna-se
importuno às vezes, quando, a correr pelas plataformas dos bondes, fazendo
reviravoltas de símio para escapar à sanha de algum condutor rabugento, nos
atordoa os ouvidos com estupendos gritos estridentes.
Nada
lhe empana a limpidez de espírito, nada. Está tão habituado a anunciar todos os
dias "um grande atentado, um pavoroso incêndio, a prisão do célebre
bandido Fulano", que afinal acaba por encarar todos esse fatos
indeferentemente.
Tem
gestos próprios e expressões peculiares. Para ele um assassínio ou um suicídio
é simplesmente uma "encrenca". Um conflito é um "robo". Sua
interjeição predileta é uê, que aliás é usada por toda a gente carioca.
Parece
que desconhece hierarquias e vaidades tolas, porque não empresta títulos a
nenhum nome. Diz: "O partido do Pinheiro, discursos do Ruy Barbosa, o
governo do Nilo Peçanha", como se todos os cabecilhas da República fossem
apenas vendedores de jornais.
Fala
sobre política, conhece o valor de nossos parlamentares, discute os principais
episódios da conflagração européia, critica os atos do poder e emprega
imoderadamente esses vistosos adjetivos que figuram nos cabeçalhos dos artigos
importantes para engodar o público incauto.
Detesta
a monotonia dos tempos de paz. Gosta das revoluções, dos motins, das grossas
"mixórdias" que lhe proporcionam ocasiões de ver todas as folhas
arrebatadas, sem que haja necessidade de ele gritar como nos dias ordinários.
Não
é somente o jornalista que explora vantajosamente os crimes - ele, o garoto
endiabrado, também sabe tirar partido das mais insignificantes perturbações da
ordem, revestindo todos os fatos de acessórios que lhes dão proporções
extraordinárias. Parece que tem o dom de pôr um grande vidro de aumentar em
cima dos acontecimentos.
É astucioso, impostor, velhaco.
Com
uma finura de comerciante velho, emprega artimanhas de mestre, complicados
ardis, artifícios que são uma obra-prima de sutileza, tudo para embair os
transeuntes. Mente apregoando sedutoras notícias fantásticas.
Enfim, sob certos pontos de vista, o pequeno
garoto vendedor de jornais é uma espécie de jornalista em miniatura...
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