O nariz dela se
franzia um pouco no riso
(Rubem
Braga)
Então a moça caiu e
ralou o joelho esquerdo; estava com as pernas nuas. Ele a ergueu, fê-la
sentar-se em um banco, tirou o lenço limpo, foi embebê-lo na água da pequena
bica e limpou o ferimento. Sentiu prazer em fazer isso. No joelho moreno havia
a mancha vermelha. O sangue não fluía, mas estava ali, sob a pele rarefeita, e
porejava sutilmente. Foi novamente embeber o lenço, mas não o passou sobre o
ferimento, apenas o premiu de leve e o retirou. Estava com uma pequena mancha
de sangue, tão leve que era apenas rosada.
Ficou um instante a
olhar o joelho, e pensando como são diferentes os joelhos das mulheres. Há
homens que não são atentos aos joelhos, nem reparam como eles mudam de
personalidade quando a perna se estende ou se dobra, ou melhor, como a personalidade
de cada um depende de sua mudança nesse jogo.
Aquele não era agudo nem
largo, nem muito alto, era um joelho suave, mas com algo de poderoso, mais do
que faria prever a delicadeza daquela moça. Ficaria estranho se demorasse mais
o olhar, a moça pensaria que ele estava olhando a coxa --ela erguera um pouco a
saia branca. Depois passaram por uma farmácia, e ele insitiu em que ela
passasse um pouco de mercuriocromo, mas isso foi o rapaz da farmácia que fez.
Perguntou quanto era, o rapaz disse que não era nada; saíram.
Andando, ele não podia
ver o joelho da moça; levou-a para o terraço de um bar; não sentou a seu lado,
mas defronte, afastando um pouco a cadeira, e só quando vieram os dois copos de
suco de laranja e ele se curvou para beber é que olhou o joelho. Ela cruzara as
pernas, e o joelho ferido, com aquela mancha viva do mercuriocromo, parecia
mais alto, quase sensacional, sobre o outro.
Começou a conversar
alguma coisa -- não quisera açúcar, e o suco de laranja estava ácido, e isso
lhe fazia bem à boca entediada do gosto do cigarro -- e assim, olhando-a nos
olhos, procurava se livrar daquela vontade de olhar o joelho, de segurá-lo com
a mão -- primeiro pela frente, na rótula, nas duas depressões que dão a todo
joelho um vago ar bovino -- mesmo porque o joelho é manso e trabalhador como um
boi -- depois dos lados, onde há, de cada lado como que um cabo, de osso ou
cartilagem, tenso, ao mesmo tempo duro e elástico, fugindo sob a pele quando se
tenta prendê-lo com a mão -- depois atrás, onde a pele é mais alva e fina, onde
há um calor de segredo, como no pescoço de um cavalo, o calor do sangue
passando, o inocente calor animal.
A moça contara alguma
coisa e ela mesmo ria, e ele ficou um instante imaginando -- o nariz dela se
franzia um pouco no riso, e os olhos verdes, apertados, brilhavam, e os dentes
eram pequenos e muito brancos na boca rubra -- imaginando que ela o acharia
meio louco e talvez engraçado se ele dissesse o que estava pensando, uma coisa
assim: "Eu tenho uma grande amizade pelo seu joelho esquerdo".
Nenhum comentário:
Postar um comentário