Calor do cão, dias de cão
Às noites abafadas e mal-dormidas
seguem manhãs secas e tardes tórridas. Sem trégua para o corpo, quem não rogou
por chuva ou sombra nesta estação atipicamente escaldante? E quem, sem
encontrar o frescor que procura, não praguejou: “Calor do cão!”? Mas o verão de
2013-2014 não será marcado tão-somente pelos recordes de temperatura. O ar está
mais do que quente. Está carregado de uma perigosa escalada de corrosão do
tecido social: briga de torcidas em Joinville; rebelião e assassinatos em
presídio do Maranhão; criação de grupos de justiceiros no Rio; incêndios em
série de ônibus em São Paulo; a ação dos black blocs e a morte do repórter
cinematográfico Santiago Andrade. Os tempos que correm são dias de cão.
Calor do cão e dias de cão. Não é
coincidência que as duas expressões se encontrem nesta época de temperaturas
inclementes. Elas foram forjadas juntas há mais de dois milênios, sob o sol
mediterrâneo. Os gregos antigos perceberam haver uma relação entre o calor
escaldante e o humor humano. Erraram na causa. Mas criaram um vigoroso simbolismo.
Para eles, a explicação estava
nos céus e não na natureza do homem. O cachorro em questão era a constelação do
Cão Maior e sua principal estrela, Sírius, a mais brilhante do firmamento
(próxima às Três Marias). Os gregos notaram que Sírius, também conhecida como
Estrela Cão, sumia por cerca de 70 dias. E, pouco antes do verão, voltava a
aparecer no leste, já na alta madrugada.
A conclusão a que aqueles homens chegaram foi de
causa e efeito: a estrela com maior fulgor se aproximava do sol nascente e o esquentava.
Sírius provocava, então, a estação cálida, o calor do cão. Os gregos
acreditavam ainda que aquele período era marcado pela influência maligna do
astro celeste: fraqueza de ânimo, tentações da carne e pestilências. Eram os
dias de cão.
O Ocidente herdou as duas
expressões e as manteve vivas geração após geração. Elas, afinal, continuam a
dizer muito. O homem é essencialmente o mesmo desde sempre. Sofre os efeitos da
natureza, a despeito da civilização que construiu. E o abafamento do clima continua
a ser um potencial catalisador de comportamentos extremados, bestiais.
Talvez seja exagero dizer que o
verão brasileiro é a causa dos dias de cão. Mas, se não há explicações
certeiras para o diagnóstico, ao menos é possível recorrer a metáforas climáticas
para apontar o remédio. É hora de esfriar os ânimos. De andar pela sombra.
Ou, para quem preferir, é tempo
de procurar alguma luz na escuridão, como a das estrelas na noite escura. E de
lembrar que os homens e suas paixões vão passar, mas que elas continuarão lá no
alto – milênio após milênio.
Fernando Martins
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