Pacotes, excluídos e emergentes
Ou: o uso do eufemismo na arte de governar e de administrar
as relações entre as classes
Considere-se a afirmação
seguinte: “Os países atrasados anunciaram um pacote de ajuda aos miseráveis”. Considere-se
agora esta outra: “Os países emergentes anunciaram um conjunto de medidas de
ajuda aos excluídos”. Qual a diferença entre uma frase e outra? Nenhuma, quanto
ao conteúdo. Mas como soa mais benigna a segunda, expurgada da crueza selvagem
da primeira... A primeira, dita num salão, choca como palavrão. Soa como vitupério
de rameira em rixa de bordel. A segunda deleita como solo de clarineta. Parece
discurso de doutor em noite de entrega de título honoris causa. Por
isso, governa-se com a segunda.
Estamos falando da arte de se
valer dos eufemismos. Quando morre a mãe de alguém, é grosseiro anunciar-lhe:
“Sua mãe morreu”. No mínimo, a pessoa dirá que a mãe “faleceu”. Também poderá
dizer que “desapareceu”. Ou então, se ainda achar pouco, que “feneceu”,
delicado verbo emprestado às flores, com o que a morte se apresentará cheirosa
como lírio, colorida como cravo. O eufemismo, como a hipocrisia, é a homenagem
que, na linguagem, o vício presta à virtude. Soa mais virtuoso confessar a
existência de “relações impróprias” com alguém, conforme fórmula celebrizada
pelo presidente dos Estados Unidos, do que dizer que se cometeu adultério.
Na segunda das
frases acima estão reunidos três dos eufemismos mais correntes na vida pública.
Dois deles são universais – “emergente” para país atrasado e “excluído” para
miserável. O terceiro, “conjunto de medidas” em lugar de pacote, fala
exclusivamente à sensibilidade brasileira e, mais ainda, do atual governo
brasileiro. “Emergente” para país atrasado ou, para ser mais exato, remediado,
é a última de
uma longa linhagem de fórmulas classificatórias dos países segundo
sua riqueza. Até a primeira metade do século, quando ainda não se carecia de
eufemismos, nesta área – ou, caso se prefira, de linguagem politicamente
correta – os países eram simplesmente ricos e pobres, quando não metrópoles e
colônias. Com a adoção do conceito de “desenvolvimento”, depois da II Guerra,
passaram a ser "desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”. Mais adiante, para não
achincalhar a todos, indistintamente, com a pecha infamante de
“subdesenvolvido”, premiou-se os melhores com o gentil “em desenvolvimento”.
Tais países não eram
mais “sub”, não estavam mais tão por baixo. Nos últimos anos,
substituiu-se o “em desenvolvimento” por “emergente”, a palavra que igualmente
se opõe ao “sub”. São países não mais submersos, mas que emergem, já põem a
cabeça para fora.
“Excluídos”
para designar os miseráveis é o coroamento de uma linhagem mais longa ainda de
palavras com as quais se tenta melhorar a condição das pessoas na rabeira da
escala social. Já se recorreu a peças do vestuário, por exemplo. Na Revolução
Francesa havia os “sans-culottes”, os desprovidos do tipo de calça – o
“culotte” – de uso dos nobres. Na Argentina de Perón e Evita consagrou-se o
“descamisado”. Também já se falou – e se fala ainda – em menos favorecidos,
despossuídos, humildes... “Excluído”, dirá o leitor, tem um sentido diverso. É
aquele que o sistema produtivo exclui, no entanto, dificilmente alguém será
miserável e incluído. O que leva a concluir que, na prática, o excluído quase
sempre se confunde com o miserável.
Resta falar da sorte da palavra
“pacote”. “Pacote” nasceu inocentemente, na administração da economia, talvez por
imitação das agências de turismo, que quando vendem passagens e hospedagem,
tudo junto, vendem um “pacote”, para designar não uma, mas várias iniciativas
adotadas ao mesmo tempo. Nasceu nesse sentido e nele devia permanecer: o de uma
pluralidade de medidas, em vez de uma única. Sabe-se que o governo, para
enfrentar a presente crise, adotará uma pluralidade de medidas. (...) Ocorre,
circunstância fatídica, que os pacotes foram introduzidos na política
brasileira pelo regime militar e
costumavam ser baixados sem aviso nem consulta. Essa característica
acabou contaminando o conceito de pacote, e eis-nos então de volta, à anódina
expressão “conjunto de medidas”, com a qual se pretende conferir a tais
medidas, por maldosas que sejam, um atestado de bom comportamento. O eufemismo,
desde sempre, foi parte integrante tanto da arte de governar quanto da de
administrar as relações entre as
classes sociais. No Brasil do século passado não havia escravo.
Havia o “elemento servil”. O que isso tudo quer dizer é que quando é difícil
modificar a sociedade, ou o governo, modifica-se a linguagem. Se não
conseguirmos, governo e sociedade, ser mais justos ou mais democráticos,
sejamos , pelo menos, mais finos.
(TOLEDO, Roberto Pompeu de. Revista Veja, 14 de out.1998)
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