O tempo que passa e o
tempo que não passa
É muito comum pensar no tempo como tempo sequencial, como
categoria ordenadora que organiza os acontecimentos vividos numa direção com
passado, presente e futuro, um tempo irreversível, a flecha do tempo, um tempo
que passa. Também estamos acostumados a pensar na memória como um arquivo que guarda
um número significativo de lembranças, semelhante a um sótão que aloca uma
quantidade de objetos de outros momentos da vida, que lá ficam quietos,
guardados, disponíveis para o momento no qual precisamos deles e queremos
reencontrá-los. No entanto, a forma na qual a psicanálise pensa o tempo e a
memória está muito distante desta maneira de concebê-los. Na psicanálise, tanto
o tempo quanto a memória só podem ser considerados no plural. Há temporalidades
diferentes funcionando nas instâncias psíquicas e a memória não existe de forma
simples: é múltipla, registrada em diferentes variedades de signos.
Há um tempo que passa, marcando com a sua passagem a caducidade
dos objetos e a finitude da vida. A ele Freud se refere no seu curto e belo
texto de 1915, “A transitoriedade”, no qual relata um encontro acontecido dois
anos antes, em agosto de 1913, em Dolomitas, na Itália, num passeio pela
campina na companhia de um poeta. Ambos dialogam sobre o efeito subjetivo que a
caducidade do belo produz. Enquanto para o poeta a alegria pela beleza da
natureza se vê obscurecida pela transitoriedade do belo, para Freud, ao
contrário, a duração absoluta não é condição do valor e da significação para a
vida subjetiva. O desejo de eternidade se impõe ao poeta, que se revolta contra
o luto, sendo a antecipação da dor da perda o que obscurece o gozo. Freud, que está
escrevendo este texto sob a influência da Primeira Guerra Mundial, insiste na importância
de fazer o luto dos perdidos renunciando a eles, e na necessidade de retirar a
libido que se investiu nos objetos para ligá-la em substitutos. São os objetos
que passam e, às vezes, agarrar-se a eles nos protege do reconhecimento da
própria finitude. Porém, a guerra e a sua destruição exigem o luto e nos
confrontam com a transitoriedade da vida, o que permite reconhecer a passagem
do tempo.
( Leonor Alonso Silva, Revista Cult,
Abril 2006)
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