Testemunho
VEJO UMA ARANHA caçar uma mariposa — eis
o problema. Mato a aranha? Deixo a aranha viva e salvo a mariposa? Deixo a
aranha devorar a mariposa?
O fato se passa numa terça-feira de
carnaval, mas não faço alegoria. Não me refiro veladamente a um pierrô malvado
que sequestra uma indefesa colombina... É carnaval, mas estou sentado à minha
mesa de trabalho e é a trinta centímetros de mim, sob a borda da janela, que se
processa esse assassinato.
Detenho-me e observo. A mariposa se
agita presa por fios invisíveis, e já da sombra surge a aranha, pequenina,
dedilhante. A princípio sou pura curiosidade: a aranha é muito menor que a
mariposa, que irá fazer? Aproxima-se, faz uma volta em torno dela, detém-se em
certos pontos, move afanosamente as pernas. A mariposa se agita menos, enleada.
É quando intervém em mim o sentimento: a aranha vai devorá-la! O seu trabalho
agora é sinistro: sobe na mariposa, tece-lhe na cabeça, procura virá-la, muda
de posição — upa! — vira-a. Parece um homem trabalhando,
amarrando sua presa.
Ouço distante o rumor de um bloco que
passa lá na rua dos fundos. O Rio inteiro está mergulhado na folia, e é como se
a aranha aproveitasse essa distração para cometer o seu crime silencioso. Por
acaso, um dos habitantes da cidade — eu — ficou em casa, e com isso a aranha
não contava. Sou a testemunha. Mais que isso: posso evitar o crime. Bastaria um
gesto meu e a mariposa estaria salva. Devo fazê-lo?
Enquanto isso, a aranha continua sua
faina sinistra. Agora arrasta a mariposa, já imobilizada, para aquele canto da
sombra, sob o parapeito, donde saíra momentos antes. Percebo na aranha uma
inteligência quase humana. Pobre mariposa, e o carnaval troando lá fora! Vou
salvá-la. Ergo a mão, mas vacilo como uma divindade irresoluta. Um segundo,
minha mão onipotente detém-se erguida no ar. Enfim, para que servem as
mariposas?
— Para que as aranhas as comam —
responde-me a aranha sem interromper seu serviço.
— Sim, mas para que servem as aranhas?
— Para comer as mariposas.
— Ora bolas, mas para que servem as
aranhas e as mariposas?
A aranha já não se dignou responder. A
essa altura sumira com a mariposa sob o parapeito da janela. Alguém, providencialmente,
bate à porta do escritório e me chama à realidade dos homens.
Ferreira
Gullar. A estranha vida banal.
Rio
de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 77-8.
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