A LÍNGUA BRASILEIRA
A
questão da língua que se fala, a necessidade de nomeá-la, é uma questão
necessária e que se coloca impreterivelmente aos sujeitos de uma dada sociedade
de uma dada nação. Porque a questão da língua que se fala toca os sujeitos em
sua autonomia, em sua identidade, em sua autodeterminação. E assim é com a
língua que falamos: falamos a língua portuguesa ou a língua brasileira?
Esta
é uma questão que se coloca desde os princípios da colonização no Brasil, mas
que adquire uma força e um sentido especiais ao longo do século XIX. Durante
todo o tempo, naquele período, o imaginário da língua oscilou entre a autonomia
e o legado de Portugal. De um lado, algumas vozes defendiam nossa autonomia,
propugnando por uma língua nossa, a língua brasileira. De outro, os gramáticos
e eruditos consideravam que só podíamos falar uma língua, a língua portuguesa,
sendo o resto apenas brasileirismos, tupinismos, escolhos ao lado da língua
verdadeira. Temos, assim, em termos de uma língua imaginária, uma língua padrão,
apagando-se, silenciando-se o que era mais nosso e que não seguia os padrões:
nossa língua brasileira.
Assim,
em 1823, por ocasião da Assembleia Constituinte, tínhamos pelo menos três
formações discursivas: a dos que propugnavam por uma língua brasileira, a dos
que se alinhavam do lado de uma língua (padrão) portuguesa e a formação
discursiva jurídica, que, professando a lei, decidia pela língua legitimada, a
língua portuguesa.
Embora
no início do século XIX muito se tenha falado da língua brasileira, como a
Constituição não foi votada, mas outorgada por D. Pedro, em 1823, decidiu-se
que a língua que falamos é a língua portuguesa. E os efeitos desse jogo político,
que nos acompanha desde a aurora do Brasil, nos fazem oscilar sempre entre uma
língua outorgada, legado de Portugal, intocável, e uma língua nossa, que
falamos em nosso dia a dia, a língua brasileira. (...)
Isso
quer dizer que até hoje não decidimos se falamos português ou brasileiro.
Embora a cultura escolar se queira, muitas vezes, esclarecedora em sua
racionalidade e moderna em sua abertura, acaba sempre se curvando à legitimidade
da língua portuguesa que herdamos e, segundo dizem, adaptamos às nossas
conveniências, mas que permanece em sua forma dominante inalterada, intocada: a
língua portuguesa. E quem não a fala, ainda que esteja no Brasil, que seja
brasileiro, erra, é um mal falante, um marginal da língua. É, pois,
impressionante como a ideologia da língua pura, a verdadeira, faz manter o
imaginário da língua portuguesa.
ORLANDI, Eni P. A língua brasileira. In:
Ciência e Cultura, vol. 57, n.°
2. São Paulo, abril/junho de 2005, pp.
29-30. Adaptado.