O gosto do mal e o mau gosto
Na
sociedade tecnológica se desfaz a noção de espaço, pois, graças à rapidez das
informações, o tempo real exerce tirania sobre o espaço real: o mundo está em cada
local. Assumem relevo o imediatismo e a interatividade, em razão de que na
civilização da pressa não há lugar para a meditação, para a vivência do hábito
da leitura e da análise da realidade, para o aprofundamento de dúvidas
existenciais.
O habitante do
tempo, e não mais do espaço, vive o desenraizamento: está a todo o tempo em
toda parte. Como destinatário de
completas informações sobre o acontecido a cada instante, não mais se permitem
ao homem o silêncio, o recolhimento, a reflexão, a intimidade. Na época do Orkut e do You Tube se torna público o privado e ocorre a rápida obsolescência
do up to date*. A sociedade torna-se
histérica à procura do novo que satisfaça, sôfrega na procura de emoções que
não sejam virtuais, por meios virtuais.
Dentro dessa
atmosfera, as relações interpessoais fundam-se apenas na possibilidade de o
outro satisfazer necessidades sensíveis. O outro se torna um objeto e logo cada
qual vira também objeto do outro, com perda do recíproco
respeito. Este quadro moral levou a duas situações dramáticas: o gosto do mal e
o mau gosto.
O gosto do mal
consiste na busca crescente de registros na internet de filmes sobre sevícias,
torturas e até assassinatos reais, efetivamente ocorridos, muitas vezes só para
serem divulgados. O horror vira espetáculo. Hoje se multiplicam as filmagens ou
fotografias com celular de cenas de brutalidade contra as pessoas, para puro e simples
divertimento.
De outra
parte, os meios de comunicação, na busca desenfreada de audiência, recorrem a
programações que satisfaçam mais facilmente os instintos do telespectador. Os índices
de audiência passam a ser a régua pela qual se faz o juízo positivo ou negativo
de um programa televisivo. Rompem-se, na conquista de índices de popularidade,
as fronteiras da ética. Instala-se o império do mau gosto. O gosto do mal e o
mau gosto são igualmente sinais dos tempos, caracterizados pela decomposição
dos valores da pessoa humana, portadora de dignidade só realizável se fixados
limites intransponíveis de respeito a si próprio e ao próximo, de preservação
da privacidade e de vivência da solidariedade na comunhão
social. O grande desafio de hoje é de ordem ética: construir uma vida em que o
outro não valha apenas por satisfazer necessidades sensíveis.
(Miguel Reale Junior. O
Estado de S.Paulo, A2 Espaço Aberto,
2 de fevereiro de 2008, com adaptações)
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