O vestibular da vida
Um enduro sem moto, um rali sem carro, uma
maratona onde, ao invés de atletas, correm paraplégicos, cegos, presidiários,
grávidas e doentes em suas macas, esta é a imagem que nos deixa este vestibular
realizado esta semana, mobilizando centenas de milhares de jovens em todo o
país.
Várias fotos mostram jovens correndo
desabalados dentro de seus jeans
justos e camisetas palavrosas em direção ao portão da universidade, como se
fossem dar um salto tríplice. Como se fossem dar um salto sem vara. Como se
fossem dar um salto na vida. Ao lado, aparecem parentes incentivando o
corredor-saltador, aparecem colegas gritando em torcida. Correi, jovens,
correi, que estreita é a porta que vos conduzirá à salvação! E ali está, como
São Pedro, um porteiro ou guarda, que vai bater a porta na cara do
retardatário, que chorará, implorará, arrancará os cabelos num ranger de
dentes, enquanto, saltitantes, os mais espertos pulam (ocultamente) um muro e
penetram o paraíso (ou inferno da múltipla escolha).
A Telerj declarou que teve que acordar mais de
10 mil jovens pelo despertador telefônico. Carlinhos Gordo, o maior ladrão de
carros do país, estava entre os 39 presidiários que, no Rio, fizeram, mesmo na cadeia,
o exame. Mais de trinta deficientes visuais tiveram que tatear as 51 folhas em
braile. Maria Alice Nunes teve um filho e saiu da maternidade com o recém-nascido
no colo para enfrentar o unificado. Um índio cego, o guarani José Oado, 24 anos,
disputa uma vaga em História (ou na história?). Andréa Paula Machado, 17 anos,
teve que interromper o exame escrito várias vezes, para o prazer oral do bebê que,
entre uma mamada e outra, voltava ao colo da avó. Dois fiscais que transportavam
as provas no caminho de Petrópolis morreram num acidente. Um estudante com
rubéola fez, num posto médico, prova ao lado de outro com catapora. Todas as
idades ali estavam representadas: Márcia Cristina da Silva, 13 anos, vejam só,
já começou a treinar para o vestibular de Medicina em 88, e neste só achou
difícil a prova de literatura. Mas lá estava também Edgar Carvalho, 73 anos, advogado,
trocando as delícias da aposentadoria pela ideia de se tornar médico e ainda
ser útil aos outros. Por isto, discordo da jovem que o interpelou acusando-o de
estar tirando a vaga de outro. Socialmente é melhor um velho de 73 anos que
qualquer dos jovens que faltaram à prova porque dormiam, que não foram
classificados porque achavam que vestibular era loto e vivem a ociosidade
daninha à custa de seus pais.
Mas, de todos os casos, impressiona mais o de
Maria Regina Gonçalves, uma enfermeira de 38 anos. Vejam que estória
mirabolante. Lá vai a nossa Maria Regina. Mas não vai simplesmente. Vai
grávida. Vai grávida, mas não é uma grávida amparada pelo seu marido, mas uma
grávida solteira, enfrentando o mundo com sua barriga e coragem. No entanto,
hora e meia antes do exame, em São Cristóvão, é assaltada por três marmanjos
covardes, que tomam dela os documentos, 200 mil cruzeiros, e o pior: lhe dão
uma porção de safanões, num exercício de sadismo matinal.
Maria Regina poderia, depois disto, voltar
chorando para casa e ficar lamuriando o resto da vida. Fez o contrário: foi em
frente, embora, ao chegar ao local, soubesse que uma outra colega, também
assaltada, desistira do exame. Maria Regina deu um jeito, arranjou até cópia
xérox de sua carteira de identidade, fez a prova, comprometendo-se a mostrar os
outros documentos mais tarde.
Mas, de noite, teve uma hemorragia. Pena que
os ladrões não pudessem ver a cena, pois ficariam mais felizes. O médico lhe
ordena "repouso absoluto". Ela ali "repousando", mas
agoniada, porque a burocracia lhe exigia comprovações de documentos para
validar os exames. Como desgraça pouca é bobagem, quatro dias depois morre o pai
de seu namorado, daí a uns dias ela aborta e teve que ficar mesmo internada.
E vede agora, ó filhinhos e filhinhas do
papai, que esbanjais vossos corpinhos sem destino nas praias da
irresponsabilidade! Maria Regina foi a primeira colocada (nota 96) no concurso
para Enfermagem e Sanitarismo. Tirou primeiro lugar e seu nome não apareceu na
lista. Ainda vai ter que provar que existe. Mas já impetrou mandado de segurança.
É claro que vai ganhar.
(Affonso Romano de Sant'Anna, “A Mulher Madura”)