A abolição do
gerúndio
(José
Augusto Carvalho)
José
Roberto Arruda, governador de Brasília, em seu artigo “Demiti o gerúndio”,
argumenta que demitir o gerúndio era uma necessidade, porque os funcionários
públicos recorriam a ele "para justificar a própria ineficiência".
Para ele, ditos como "estamos preparando" ou "estamos providenciando"
(exemplos citados por ele como condenáveis, mas exemplos legítimos do uso do
gerúndio que nada têm a ver com o gerundismo) caracterizariam "um crime
contra a população" por representar uma "progressão indefinida".
Além
do raciocínio indutivo que faz tábula rasa de todos os funcionários, considerados
proteladores e ineficientes, José Roberto Arruda condena o gerúndio porque,
para ele, o abuso do gerúndio é que seria responsável pelo emperramento da
máquina administrativa. O gerúndio é que seria responsável pela burocracia,
"enquanto doentes padecem nas filas dos hospitais". Vale dizer:
eliminando-se o gerúndio, os doentes terão atendimento, os funcionários
exercerão suas funções
com zelo, dedicação e
eficiência.
"Abolir"
o gerúndio é cercear a liberdade de expressão do falante. Não é o gerúndio que
provoca o adiamento de um processo, a procrastinação de um serviço público ou a
falta de atendimento médico. Na ótica simplista do Sr. Arruda, eliminando-se o
gerúndio, eliminam-se também a preguiça e a incompetência dos funcionários e
burocratas da sua administração. Se a mesa está quebrada, basta eliminar a
palavra "quebrado" do dicionário para que a mesa fique consertada;
para que um motor de carro funcione sempre, basta eliminar a palavra
"pane" dos dicionários. Para que um funcionário trabalhe, basta
eliminar o gerúndio do seu vocabulário.
O
Sr. José Roberto Arruda descobriu a cura de todos os males! Oxalá falantes
ilustres tenham o bom senso de entender que a nossa língua portuguesa não tem
um único dono. Nossa língua portuguesa é a língua de todos nós, mesmo que
alguma autoridade não concorde com o nosso jeito de usá-la.
O gerúndio é só o
pretexto I
(Luiz
Costa Pereira Jr.)
Ele
chegou furtivo, espalhou-se feito gripe e virou uma compulsão nacional. Em
menos de uma década, o gerundismo cavou pelas bordas seu lugar sob os holofotes
do país. É o Paulo Coelho da linguagem cotidiana. Nas filas de banco, em
reuniões de empresas, ao telefone, nas conversas formais, em e-mails e até nas
salas de aula, há sempre alguém que "vai estar passando" o nosso
recado, "vai estar analisando" nosso pedido ou "vai poder estar
procurando" a chave do carro. É fenômeno democrático, sem distinção de
classe, profissão, sexo ou idade. O gerundismo já foi alvo de tantos e tão
calorosos debates, que mesmo a polêmica em torno dele pode estar virando uma
espécie de esporte de horas vagas, quase uma comichão a que poucos parecem indiferentes.
Embora não haja explicação única para a origem do fenômeno, sua popularidade
chama a atenção não só de especialistas da língua, mas de empresários e ouvidos
sensíveis a saraivadas repetidas do mesmo vício.
O
gerundismo pode não passar de moda e, tal como veio, desmanchar-se no ar, como
outros vícios de ocasião. O movimento recente contrário à sua aceitação pode
indicar que o fenômeno está longe de generalizar-se. Mas, se ele corresponder
mesmo a uma necessidade nem sempre consciente da comunidade, erradicá-lo vai demorar
muito mais do que se imagina. Ainda é cedo para garantir, com firmeza, o futuro
do combate ao gerúndio vicioso. Se tal esforço "vai estar surtindo
efeito", só o tempo "vai poder estar dizendo".
http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=10887
[com adaptações]
O Gerúndio é só o
pretexto II
(Luiz
Costa Pereira Jr.)
Ao
adotar o gerúndio numa construção que não o pedia, a pessoa finge indicar uma
ação futura com precisão, quando na verdade não o faz. Para a professora Maria
Helena de Moura Neves, da UNESP e do Mackenzie, autora da Gramática de Usos do
Português, o gerundismo faz
a informação pontual
(em que o foco está na ação) ser transformada numa situação em curso
(durativa). O aspecto pontual é aquele em que um fenômeno é flagrado
independentemente da passagem de tempo – o verbo se refere só à ação. São
pontuais, por exemplo, expressões como
"vou fazer"
ou o futuro do presente, "farei".
Porque
os mecanismos linguísticos são acionados pela intenção, diz Maria Helena, é
possível obter um efeito pragmático na locução do gerúndio de atenuar o
compromisso com a palavra dada.
Quando
digo "vou passar seu recado", a referência é a ação em si. Não me
atenho à sua duração. Com isso, amarro um compromisso. A ação é indicada ali,
pura e simplesmente. Garanto que ela se cumprirá. Ao usar o gerúndio, deixo de
me referir puramente à ação e incorpora-se o aspecto verbal durativo. A ênfase
passa a ser outra. Você comunica que até encontrará tempo para fazer a ação, mas
seu foco não está mais nela.
http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=10887
[com adaptações]