BOAS VINDAS

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sexta-feira, 31 de maio de 2013

Um sonho dentro de um sonho



Um sonho dentro de um sonho





Tome este beijo sobre a têmpora
e, partindo de ti agora,
muito a dizer nesta franca hora 
Você não está errado, quem diria
que meus sonhos têm sido o dia;
Ainda se a esperança fosse um açoite
em um dia, ou numa noite,
numa visão, ou em ninguém
É isso então o que está aquém?
Tudo o que vejo, tudo o que suponho
É só um sonho dentro de um sonho.

As ondas quebram e fico ao meio
de uma praia atormentada
e eu seguro em minhas mãos
uns grãos de areia dourada -
Quão poucos! E como se vão
Pelos meus dedos para o nada,
enquanto eu choro, enquanto eu choro!
Ó Deus! Eu vos imploro:
Não posso mantê-los em minha teia?
Ó Deus! Posso eu proteger
das duras ondas um grão de areia?
Será que tudo o que vejo e suponho
É só um sonho dentro de um sonho?


Edgar Allan Poe


quinta-feira, 23 de maio de 2013

Ternura



      Ternura




Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor
seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentando
Pela graça indizível
dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura
dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer
que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas
nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras
dos véus da alma...
É um sossego, uma unção,
um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta,
muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite
encontrem sem fatalidade
o olhar estático da aurora.



Vinícius de Moraes


quarta-feira, 22 de maio de 2013

Diminutivo



Diminutivo



        Sempre pensei que ninguém batia o brasileiro no uso do diminutivo, essa nossa mania de reduzir tudo à mínima dimensão, seja um cafezinho, um cineminha ou uma vidinha. Só o que varia é a inflexão da voz. Se alguém diz, por exemplo, "Ô vidinha", você sabe que ele está se referindo a uma vida com todas as mordomias. Nem é uma vida, é um comercial de cigarro com longa metragem. Um vidão. Mas se disser "Ah vidinha..." o coitado está se queixando dela, e com toda a razão. Há anos que o seu único divertimento é tirar sapatos e fazer xixi. Mas nos dois casos o diminutivo é usado com o mesmo carinho. 
      O francês tem o seu "tout petit peu", que não é um diminutivo, é um exagero. Um "pouco todo pequeno" é muita explicação para tão pouco. Os mexicanos usam o "poco", o "poquito" e menos ainda que o "poquito" o "poquetín". Mas ninguém bate o brasileiro. 
      Era o que eu pensava até o dia, na Itália, em que ouvi alguém dizer que alguma coisa duraria um "mezzoretto". Não sei se a grafia é essa mesma, mas um povo que consegue, numa palavra, reduzir uma meia hora de tamanho e você não tem nenhuma dúvida de que um "mezzoretto" dura os mesmos trinta minutos de uma meia hora convencional, mas passa muito mais depressa é invencível em matéria de diminutivo.
      O diminutivo é uma maneira ao mesmo tempo afetuosa e precavida de usar a linguagem. Afetuosa porque geralmente o usamos para designar o que é agradável, aquelas coisas tão afáveis que se deixam diminuir sem perder o sentido. E precavida porque também o usamos para desarmar certas palavras que, na sua forma original, são ameaçadoras demais.
      "Operação", por exemplo. É uma palavra assustadora. Pior do que "intervenção cirúrgica", porque promete uma intervenção muito mais radical nos intestinos. Uma operação certamente durará horas e os resultados são incertos. Suas chances de sobreviver a uma operação... sei não. Melhor se preparar para o pior.
      Já uma operaçãozinha é uma mera formalidade. Anestesia local e duas aspirinas depois. Uma coisa tão banal que quase dispensa a presença do paciente.
      (...)
      Se alguém disser que precisa ter uma conversa com você, cuidado. É coisa da maior importância. Os próprios destinos do Pacto do Atlântico podem estar em jogo. Uma conversa é sempre com hora marcada.
      Já uma conversinha raramente passa do nível da mais cândida inconsequência. E geralmente é fofoca. A hora para uma conversinha é sempre qualquer hora dessas.
      Num jogo você arrisca tudo, até a hora. Num joguinho aceita-se até o cheque frio.
      Entre ter um caso e ter um casinho a diferença, às vezes, é a tragédia passional.
      No Brasil, usa-se o diminutivo principalmente em relação à comida. Nada nos desperta sentimentos tão carinhosos quanto uma boa comidinha.
      Mais um feijãozinho?
      O feijãozinho passou dois dias borbulhando num daqueles caldeirões de antropófagos com capacidade para três missionários. Leva porcos inteiros, todos os miúdos e temperos conhecidos e, parece, um missionário. Mas a dona de casa o trata como um mingau de todos os dias.
      Mais um feijãozinho?
      Um pouquinho.
      E uma farofinha?
      Ao lado do arrozinho?
      Isso.
      E quem sabe mais uma cervejinha?
      Obrigadinho. 
      ─(...)
      O diminutivo é também uma forma de disfarçar o nosso entusiasmo pelas grandes porções. E tem um efeito psicológico inegável. Você pode passar horas tomando "cervejinha" em cima de "cervejinha" sem nenhum dos efeitos que sofreria depois de apenas duas cervejas.
      E agora, um docinho.
      E surge um tacho de ambrosia que é um porta-aviões.


(Adaptação de VERÍSSIMO, L. F. “Diminutivos”.
Comédia da vida privada. 101 crônicas
escolhidas. Porto Alegre: LP&M, 1994)