BOAS VINDAS

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sexta-feira, 29 de junho de 2012

A arte de roubar livros


A arte de roubar livros
crônica


"A tentação de roubar livros nos persegue pela vida afora, tanto que ninguém devolve os livros que pede emprestado. Não se trata de um problema financeiro, apesar de os livros não estarem exatamente baratos. É uma coisa emocional: como se o amor pela palavra impressa não pudesse ser conspurcado pela transação comercial.
Um amigo meu, ex-revolucionário como Rubin e Hoffman, tornou-se, como eles, um bem-sucedido executivo no Rio de Janeiro, e resolveu aplicar parte de seus ganhos abrindo uma pequena livraria na Zona Sul, cuja administração ficou a cargo de um gerente. Todos os dias ia lá, misturava-se com os clientes – era um lugar bem frequentado – e ficava observando o movimento. De vez em quando, para testar a velha habilidade, roubava, ele mesmo, um livro. Levava-o para o gerente. – Você me viu roubar este livro?
Confesso que não vi, dizia o gerente, mas o dono da livraria não conseguia acreditar: será que o homem estava querendo apenas agradar o patrão, mesmo com o risco de ser posto para fora como incompetente? Com um suspiro, colocava o livro na prateleira e ia embora. Triste: quando não se pode mais roubar livros, dizia, que graça resta na vida?"


Trecho retirado do livro: Moacyr Scliar
(Coleção Melhores Crônicas, 2004)


quarta-feira, 27 de junho de 2012

A quinhentos metros


A quinhentos metros

Crônica


A quinhentos metros, os vossos belos olhos desaparecem; e essa claridade do vosso rosto; e a fascinação da vossa palavra. É uma pena (eu também acho que é uma pena!), mas, a quinhentos metros, tudo se torna muito reduzido: sois uma pequena figura sem pormenores; vossas amáveis singularidades fundem-se numa sombra neutra e vulgar. Ao longe, caminhais como qualquer pessoa — e até como certas aves: é o que resta de vós: esse ritmo, na imensa estrada que também se vai projetando, estreita e indistinta, sobre o horizonte.
Bem sei que tendes muitas inquietações: há um mês de maio na vossa memória, e um campo em flor, e um arroio que cantava numas pedrinhas, e depois muitas, muitas cidades grandiosas e indiferentes, e teatros acesos, ramos de flores, ceias, risos, vozes, adereços de turquesa, — bem sei, bem sei. Bem sei que tudo isso ficou a mais de quinhentos metros, e ainda de longe continuais a sofrer. Mas para quem vos olha a uma distância de quinhentos metros, essas dimensões que levais convosco deixam de existir. As canções que aprendestes e a dor que sabeis, nada se avista daqui. Sois uma sombra muito pequenina, prestes a perder mesmo o ritmo do passo, a parecer parada como o próprio chão. Podereis ir para um lado ou para o outro: daqui a pouco nem saberemos para onde fostes: e as vossas decisões estarão fora do nosso alcance, como vós estareis fora da nossa vista. (...)
A quinhentos metros, na verdade, há muita ausência, vamos acabando muito depressa. Pensai que, geralmente, neste mundo, há sempre cerca de quinhentos metros de uma pessoa para outra! Somos só desaparecimento. E apenas quando conseguimos ficar, também, a uns quinhentos metros de nós mesmos, encontramos algum sossego. Porque, então, é a vez dos nossos tormentos mudarem de proporções e aspecto. De serem vistos só de longe, sem pormenores, sem voz, sem ritmo: nem mês de maio, nem flores, nem arroio. Talvez a memória serenada. Talvez nem a memória... — É assim em quinhentos metros!


Cecília Meireles

Obs.: Pelo que você observou, pela leitura atenta que fez, o texto é menos uma narrativa (crônica) em prosa e mais um poema narrativo em prosa — a chamada prosa poética.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

A primeira cartilha


A primeira cartilha

Crônica


Há coisas que a gente não esquece: a primeira namorada, a primeira professora, a primeira cartilha. Minha introdução às letras foi feita através de um livrinho chamado Queres ler? (assim mesmo, com ponto de interrogação). Era um clássico, embora clássico, embora tivesse alguns problemas, em primeiro lugar, tratava-se de um livro uruguaio, traduzido (o que era, e é um vexame, cartilhas, pelo menos, deveriam ser nacionais). Em segundo lugar, era uma obra aberta e indiscreta, trazia introduções pormenorizadas sobre a maneira pela qual os professores deveriam usar o livro com os alunos. Quer dizer: era, também, para os professores, uma cartilha, o que, se não chegava a solapar a imagem dos mestres, pelo menos os colocava em relativo pé de igualdade com os alunos (pé de igualdade, não; menos. Pé de página, e em letras bem pequenas). Isto talvez fosse benéfico, porque um estímulo tínhamos para aprender a ler: ansiávamos pra descobrir os segredos dos mestres.
Em terceiro lugar – mais isto era grave –, a cartilha começa com a palavra uva. Com a palavra só, não havia uma ilustração mostrando um grande, suculento, lascivo cacho de uvas (estrangeiras, naturalmente). Era um suplicio olhar aquelas uvas (aliás, à época, uva designava, e não por acaso, uma dona boa). Principalmente para os alunos mais pobres cujo único contato com o fruto da videira era exatamente através daquela figura.
Bem, mas não é isto o que importa. O que importa é que aquele era o nosso primeiro livro, o livro que carregávamos com orgulho em nossa pasta. E o que importa, também é que esse livro, o livro que mais esqueceríamos, tinha um nome provocadoramente amável: ele não ordenava, ele perguntava; ele não só perguntava, ele convidava. E não sei de que outra maneira se possa introduzir uma criança à leitura, se não através de um sedutor convite. Porque ler é que um ato da vontade. Diante da TV se pode ficar passivo, absorvendo imagem e sons. A TV não indaga, ela se impõe. E pode se impor por causa da força de uma tecnologia que é absolutamente totalitária: do universo eletrônico no qual vivemos ninguém escapa.
Ler, não Ler exige esforço, No mundo da leitura só se entra pagando ingresso. Decodificar as letras transformá-las em imagens é uma arte, como é uma arte tocar um instrumento musical. Mas que entram no mundo da leitura, aqueles que a eles são bem conduzidos, estes encontram nos livros um lar, uma pátria, o território dos sonhos e da emoções.
Queres ler? – pergunto a meu filho, e espero que a resposta dele seja afirmativa. Para que ele possa provar a uva da qual é feito o doce vinho da fantasia arrebatadora.

Moacyr Scliar 


sábado, 23 de junho de 2012

O leigo

O leigo

Luiz Fernando Verissimo

"Leigo" é o nome genérico de quem não está entendendo. O Leigo é mal-informado, ingênuo e simplista. As coisas precisam ser explicadas com muita clareza ao Leigo, e mesmo assim ele custa a compreendê-las.
Ele próprio costuma invocar sua condição e dizer "Sou leigo na matéria" quando se vê diante de um desafio intelectual. Diz muito isto.
Mas o Leigo nos presta um grande serviço. Como seu raciocínio é simples, ele muitas vezes faz as perguntas óbvias que nós não fazemos para não parecermos simples.
Há anos, por exemplo, não entra na cabeça do Leigo por que as tais "riquezas naturais" brasileiras de que ouvimos falar desde a escola não enriqueceram o Brasil, ou pelo menos melhoraram a vida da maioria dos brasileiros.
O Leigo nunca entendeu a venda, que mais pareceu uma doação, da Vale do Rio Doce, como nunca entendeu a campanha antiga e sistemática para desacreditar e doar a Petrobras.
Agora o Leigo — na sua ingenuidade — não está entendendo essa discussão sobre o controle estatal do petróleo do pré-sal e o destino a ser dado ao produto da sua exploração, como se não estivesse na cara o que precisa ser feito.
No plano internacional, o Leigo imagina que, se todo o dinheiro gasto no comércio de armas fosse aplicado em projetos sociais, acabaria a miséria no mundo.
Você e eu, que somos pessoas sofisticadas e por dentro, sabemos que o mundo não funciona assim, com esse altruísmo simétrico.
E essa de que um país com os problemas sociais do Brasil não tem nada que estar comprando submarino atômico só pode ser coisa do Leigo. Bendito Leigo.


quinta-feira, 21 de junho de 2012

O mato

O mato

Crônica


Veio o vento frio, e depois o temporal noturno, e depois da lenta chuva que passou toda a manhã caindo e ainda voltou algumas vezes durante o dia, a cidade entardeceu. Então o homem esqueceu o trabalho e as promissórias, esqueceu a condução e o telefone e o asfalto, e saiu andando lentamente por aquele morro coberto de um mato viçoso, perto de sua casa. O capim cheio de água molhava seu sapato e as pernas da calça; o mato escurecia sem vaga-lumes nem grilos.
Pôs a mão no tronco de uma árvore pequena, sacudiu um pouco, e recebeu nos cabelos e na cara as gotas de água como se fosse uma bênção. Ali perto mesmo a cidade murmurava, estava com seus ruídos vespertinos, ranger de bondes, buzinar impaciente de carros, vozes indistintas; mas ele via apenas algumas árvores, um canto de mato, uma pedra escura. Ali perto, dentro de um casa fechada, um telefone batia, silenciava, batia outra vez, interminável, paciente, melancólico. Alguém, com certeza já sem esperança, insistia em querer falar com alguém.
Por um instante, o homem voltou seu pensamento para a cidade e sua vida. Aquele telefone tocando em vão em um dos milhões de atos falhados da vida urbana. Pensou no desgaste nervoso dessa vida, nos desencontros, nas incertezas, no jogo de ambição e vaidades, na procura de amor e de importância, caça ao dinheiro e aos prazeres. Ainda bem que, de todas as grandes cidades do mundo, o Rio é a única a permitir a evasão fácil para o mar e a floresta. Ele estava ali num desses limites entre a cidade dos homens e a natureza pura; ainda pensava em seus problemas urbanos - mas um camaleão correu de súbito, um passarinho piou triste em algum ramo, e o homem ficou atento àquela humilde vida animal e também à vida silenciosa e úmida das árvores, e à pedra escura, com sua pele de musgo e seu misterioso coração mineral.
E pouco a pouco ele foi sentindo uma paz naquele começo de escuridão, sentiu vontade de deitar e dormir entre a erva úmida, de se tornar um confuso ser vegetal, num grande sossego, farto de terra e água; ficaria verde, emitiria raízes e folhas, seu tronco escuro, grosso, seus ramos formariam copa densa, e ele seria, sem angústia nem amor, sem desejo nem frieza, forte, quieto, imóvel, feliz.

Rubem Braga


terça-feira, 19 de junho de 2012

Uma noite de cão


Uma noite de cão
(crônica)


Ramalho! Vá entrando. Eh? Que pacote é esse?
Não sente o cheiro? Passei  n' O Rei do Frango Assado. É o melhor que se faz em São Paulo. Eu não ia chegar de mãos abanando.
Ramalho, um amigo do Rio, ao passar por São Paulo sempre parecia em meu apartamento com grandes notícias e pequenos pacotes. Como chegava habitualmente tarde e faminto, comprava no caminho qualquer coisa para comer: pizza, quibe, bauru. No entanto, jamais era bem-vindo por mim e minha mulher devido à hora imprópria das visitas, quando já íamos dormir.
Virgínia Woolf não parava de balançar o rabo e de saltar sobre o Ramalho. Embora já quase o mordera  certa vez, aquela noite nossa encantadora dálmata deu de lhe fazer festa. Minha mulher levou o frango para a cozinha. Desembrulhando sobre a mesa, era uma tentação.
Sentamo-nos no living. Ramalho acomodou-se numa poltrona, de costas para a cozinha, a contar novidades sombrias do Rio.
Vivíamos tempos pesados, tensos. Suas informações eram verdadeiras bombas. Confidenciou:
Um dos sequestradores é meu amigo.
Levei um choque. E não era para menos. Virgínia entrava no living e postava-se elegantemente sob as patas dianteiras ao lado do Ramalho. Com o frango na boca. Isso mesmo: com o frango na boca. Olhei para minha mulher que deixou escapar um:
Meu Deus!
Vocês sabem de que falo, não? - perguntou, grave.
Se Ramalho olhasse para baixo veria a cadela segurando a peça entre os dentes certamente à espera de autorização para iniciar a ceia. Erguei-me, forçando o visitante a olhar para o alto.
Conversaria de pé. Sentindo a presença da dálmata na vizinhança, ele estendeu o braço e começou a acariciar-Ihe a cabeça. A centímetros da coxa esquerda do bípede assado... Pensei nas consequências. Se ele descobrisse onde estava o seu jantar; eu teria de me vestir; descer à garagem, toda lotada naquele horário, tirar o carro da vaga e sair pela madrugada à procura talvez dramática de outro frango. " - Não quer saber qual é o amigo nosso que está envolvido?
Puxei um pufe para bem perto do Ramalho. Diminuindo seu ângulo de visão, ele teria menos probabilidade de focar Virgínia. Já trabalhei na TV e entendo desses lances.
Claro que quero.
Ramalho recuou na poltrona, ficando na mesma linha que o cão. A cara consorte empalideceu.
Olhei para o teto.
Aquilo não é um inseto? - apontei.
Ramalho e ela olharam para cima. E a dálmata também, com aquele bruta frango na boca.
É apenas uma mancha - ele observou.
Detesto insetos andando pela casa.
O expediente deu resultado. Minha mulher aproveitou o momento e atraiu Virgínia para o corredor. Ouvi o cão rosnar. Não querendo entregar a presa, fugiu com ela para o terraço iluminado, em frente ao living. Vi Virgínia, perseguida, passar com o frango.
Gosto desse terraço - disse Ramalho levantando-se e encaminhando-se para as portas de vidro.
Num salto, apaguei a luz.
Ele fica mais bonito no escuro, observe.
Apesar da escuridão. vi a cachorra escondendo-se entre as floreiras.
Vamos ao frango - ele decidiu. - O cheirinho tomou conta do apartamento.
Primeiro sirvo um uísque.
Ouvimos ganidos que assustaram o Ramalho. Ele seguiu pelo corredor.
A cachorra deve ter se machucado.
Agarrei-lhe o braço.
Tome o uísque. Então um dos sequestradores é nosso amigo?
Minha mulher apareceu afinal com um sorriso. Para a cozinha!
Ramalho sentou-se diante do frango desossado. Só para ele!
 O Rei do Frango Assado está com tudo - disse Ramalho no final. - Este estava demais! - E generoso:
  Deixei um pedaço de peito pra cadela. Será que ela gosta?
  Sei lá!

Marcos Rey